Neste segundo material material da série “Rompendo o ciclo da violência contra a mulher” abordaremos a violência contra mulheres em situação de rua. Boa leitura!

 

Nos últimos anos, houve aumento das denúncias de violência contra a mulher mas, de uma forma geral, muitos casos ainda são subnotificados. As mulheres temem denunciar o agressor, uma vez que não confiam que o Estado as protegerá. Isso não difere em relação às mulheres em situação de rua, que conhecem e convivem diariamente com a violência multifatorial. Para sobreviverem nas ruas, muitas mulheres necessitam construir relações que assegurem a viabilidade da sua vida cotidiana, uma vez que sozinhas tornam-se vulneráveis às violências presentes no contexto da rua. 

A violência vivenciada por mulheres em situação de rua é multifatorial. Segundo um estudo cartográfico com mulheres em situação de rua na cidade de São Paulo, realizado entre 2010 e 2011 (ROSA; BRETAS, 2015), a violência vivenciada nas ruas acontece de diversas formas: 

  1. Pode ser praticada por pessoas intolerantes com a situação de pobreza vivida pelas pessoas em situação de rua (PSR);
  2. Pode estar presente entre os moradores de rua, tendo como principais motivos: as dívidas, disputas por espaço, pequenos furtos, infidelidade conjugal e desavenças pessoais;
  3. Pode acontecer de forma planejada, com intenções higienistas. Neste caso, pode ser praticada por policiais, pessoas contratadas por comerciantes ou moradores que sentem-se prejudicados pela presença das pessoas em situação de rua nos arredores dos domicílios, comércios, monumentos e cartões postais das cidades.
  4. Pode acontecer a violência sexual, relatada com frequência pelas mulheres que participaram do estudo, quase sempre, praticada por homens, em situação de rua ou não, e com potencial de causar danos físicos e mentais irreparáveis na mulher

 

Design por Amanda Penetta

 

As equipes do Consultório na Rua compõem um dos serviços que é responsável pelo atendimento de mulheres em situação de rua. O Consultório na Rua é uma estratégia que foi instituída pela Política Nacional de Atenção Básica em 2011, visando a ampliação do acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde. Neste espaço é ofertada a atenção integral à saúde para esse grupo populacional, que podem estar vivenciando condições graves de vulnerabilidade e pouca retaguarda, pois na maioria das vezes possuem os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados (BRASIL, 2011). Os Consultórios na Rua são formados por equipes multiprofissionais que realizam suas atividades de forma itinerante, buscando adequar as demandas das pessoas em situação de rua. O trabalho pode ocorrer em período diurno e/ou noturno, em todos os dias da semana. Além disso, são desenvolvidas ações em parceria com as equipes das Unidades Básicas de Saúde, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPSs), aos serviços de Urgência e Emergência e a outros pontos de atenção da rede de saúde e intersetorial. 

 

Design por Ana Paula de Lima

 

Conversamos com os profissionais do Consultório na Rua de São Carlos para entendermos como esse problema está sendo enfrentado no município. Acompanhe a entrevista:

Há muitos casos de violência contra a mulher na população de rua?
Sim, na maioria, dos próprios parceiros ou entre elas por ciúme do parceiro.

Sabemos que as situações de violência contra a mulher são de difícil identificação por conta de a vítima ter medo/receio de denunciar o agressor… vocês já desconfiaram de alguma situação?
Sim, fica explícito em seus corpos. Já fizeram denúncia pedindo a solicitação de distanciamento, porém, nada se resolveu.

Vocês foram incentivados ou receberam alguma formação para atuar nesta linha de cuidado?
Não, utilizamos do conhecimento da rede que temos e torcemos para que sejam melhor atendidas.

Quais são as ações da equipe do Consultório na Rua diante do relato de violência contra a mulher?
Sempre levando a reflexão, entendendo o contexto que vivencia e o que é possível de ser feito, sobretudo, considerando o desejo da mulher, dando o apoio necessário em suas decisões.  

Conforme os relatos, quais os meios que as mulheres utilizam para se protegerem? Elas costumam denunciar o agressor? 

Algumas revidam de maneira bem violenta ao seu agressor, busca apoio nos espaços de proteção como Centro Pop*, Casa de Passagem** (ela tem o direito de ficar e o agressor não). E sim, algumas já denunciaram.

Como é possível cuidar das mulheres vítimas de violência sob o cuidado do Consultório na Rua sem arriscar a segurança da equipe ?
Mantendo sempre o respeito aos dois, a vítima e ao agressor. Compreendemos que não sabem responder de outra forma suas frustrações, aproveitamos para orientação e ajuda para ambos.

Quais são as estratégias para manejar as situações de violência contra a mulher sem limitar-se às queixas físicas e resolução de sinais/sintomas?
Já realizamos rodas de conversa sobre a violência com os moradores em situação de rua, frisando, principalmente, a violência entre eles. Quando os casais se agridem, dependendo do vínculo, trazemos a reflexão a eles, sobre a maneira que resolveram (agressão), e assim,  apontamos outras formas de resolução que não a agressão. Dá certo? Às vezes ameniza…

Entrevista realizada com a Equipe do Consultório na rua de São Carlos.

 

 

A partir dessa rápida conversa com a equipe do Consultório na Rua de São Carlos, destacamos que o processo de violência vivenciado pelas mulheres em situação de rua é intenso e complexo. Muitas mulheres estão nas ruas para fugir de situações violentas dentro do ambiente familiar e o fato de ainda assim vivenciarem situações de violência intensifica o sofrimento delas.

Vale lembrar que o acesso a saúde é um direito fundamental garantido a todos os brasileiros. Desta forma, assegurar o cuidado integral e digno é um dever do Estado. 

Enquanto munícipes, podemos ser mais protagonistas neste sentido, verificando se em nossa cidade existe uma equipe do Consultório na Rua para garantir o acesso e os cuidados básicos de saúde à essa população. Caso não exista, buscar estratégias para incentivar o investimento neste serviço, que garante o acesso à saúde àquelas pessoas que estão vivenciando uma situação de sofrimento e vulnerabilidade, em um contexto bastante específico. Temos o direito de reivindicar, conversar com os legisladores, com os conselhos municipais e nas ouvidorias para que sejam criadas políticas públicas e estratégias assistenciais municipais para esse cuidado. 

Vamos lutar para que existam equipes interdisciplinares e intersetoriais para garantir um cuidado integral, não somente das pessoas em situação de rua, como também na Atenção Primária à Saúde, que é a porta de entrada para o Sistema Único de Saúde (SUS). 

É nosso papel como cidadãos!

 

*Centro Pop: Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua, comumente chamado de Centro POP, é uma unidade socioassistencial municipal que oferta serviços para pessoas em situação de rua. Oferece orientações diversas, através de acolhimento e atendimento diário a essa população. 

**Casa de Passagem: local de atendimento e o acolhimento provisório de pessoas em situação de rua, de ambos os sexos, em situação de risco e/ou abandono, e/ou rompimento dos vínculos familiares, sem condições de sustento próprio, respeitando o direito de permanência por tempo determinado, de acordo com as articulações e ações entre os Serviços de atendimento à população em situação de rua. 

 

Referências

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). Consultório na Rua. Brasília: Ministério da Saúde; 2011. Disponível em: <http://aps.saude.gov.br/ape/consultoriorua/> Acesso em 11 de nov. de 2020

Rosa AS, Brêtas ACP. Violência na vida de mulheres em situação de rua na cidade de São Paulo, Brazil. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):275-85.

 

Texto e entrevista elaborados por:
Júlia Caltabiano Porto
Liliane Yanaguizawa

 

Equipes envolvidas:

PET-Saúde/Interprofissionalidade – São Carlos – UFSCar
Ana Beatriz de Moura
Cristina Helena Bruno
Jair Borges Barbosa Neto

Grupo Temático Diversidade e Cidadania
Amanda Lélis Angotti Azevedo
Andressa Soares Junqueira
Beatriz Barea Carvalho
Camila Felix Rossi
Carla Regina Silva
Carolina Serrati Moreno
Flávio Adriano Borges
Glieb Slywitch Filho
Jhonatan Vinicius de Sousa Dutra
Larissa Campagna Martini
Letícia de Paula Gomes
Natália Pressuto Pennachioni
Natália Stofel
Uma Reis Sorrequia

 

Créditos da imagem: Adj no Rawpixel

Veja também:

Autor

  • Larissa Campagna Martini

    Professora do Departamento de Medicina e do Programa de Pós-Graduação em Gestão da Clínica, ambos da Universidade Federal de São Carlos. Formada em Terapia Ocupacional, com Doutorado em Psiquiatria e Psicologia Médica pela UNIFESP. Áreas de atuação: Saúde Mental, Trabalho e Saúde, Inclusão no Trabalho e Atenção Básica.

    View all posts

Deixe um comentário