Por Lílian Pereira de Carvalho & Livia Maria Falconi Pires

No atual contexto de pandemia da COVID-19, materializaram-se novas formas de dizer, de se referir no e ao mundo, visto que muitas pessoas estão vivendo situações pelas quais ainda não haviam passado. Expressões como novo normal e fica em casa emergiram, significando e ressignificando as palavras durante a pandemia. Fazer-se entender nesse momento e, de certa forma, apropriar-se dessas expressões no cotidiano se fez necessário. Entre tantos termos e expressões está o testar positivo, uma das muitas formas de se dizer que alguém está com COVID-19.

Uma manchete de jornal como “Mais de 2,6 milhões de brasileiros já testaram positivo para COVID-19”[1], tão corrente na situação atual, pode causar certo estranhamento porque essa oração não cumpre com as regras da gramática do português brasileiro. O termo “positivo”, do ponto de vista de sua função na oração, funciona como um predicativo, ou seja, representa uma característica, um atributo dado ao elemento sobre o qual se está falando. Por exemplo:

Nesses exemplos, a palavra “positivo” está ligada diretamente ao pronome “Ele”, no primeiro caso, e ao substantivo “condições”, no segundo, como “positivas”. Essa adequação corresponde à flexão de gênero (feminino e masculino) e número (singular e plural). Portanto, a palavra “positivo”, nesse funcionamento, precisa concordar com os termos aos quais se liga.

Na língua portuguesa, o verbo “testar” exige um complemento obrigatório, denominado objeto direto, sem o qual a oração não faz sentido. Quando se diz “eu quero”, necessariamente surge a pergunta: “Quer o quê?”, visto que o sentido do verbo “querer” só se completa se for dito o que se quer (ou se isto estiver subentendido).

O verbo “testar” funciona dessa mesma forma: em “Eu testei a bicicleta e ela está andando bem”, “a bicicleta” é um complemento obrigatório. A partir desse funcionamento é que testar positivo pode soar estranho, pois um predicativo, o “positivo”, não poderia acompanhar um verbo, mas apenas um sujeito, caracterizando-o, sendo seu atributo.

Por que, então, dizemos “Ele testou positivo”, “Ela testou positivo”, “Todos testaram positivo”, com o termo “positivo” sempre no masculino e no singular?

Porque testar positivo tem sido usado no Brasil por influência direta da língua inglesa. Nessa língua, existe uma propriedade que expressa o resultado da ação, porém sem aparecer de fato na frase, como em “She tested positive”, “He tested positive” ou “They tested positive[2]. No português brasileiro, não haveria uma tradução direta dessas frases e, se houvesse, seria algo como: “ela fez o teste e ele deu positivo”, “ele fez o teste e ele deu positivo” ou “eles fizeram o teste e ele deu positivo”. No entanto, do ponto de vista normativo da língua portuguesa, não seria possível uma expressão como “alguém testou positivo”.[3]

É importante dizer que levar uma expressão de uma língua para a outra ocorre em todas as línguas e, no caso de testar positivo, acontece esse mesmo movimento do inglês para o português, para o francês e para o espanhol, como se pode  verificar nos exemplos: “el 59% de las personas que testearon positivo para COVID-19, y por tan solo el 18% de las que testearon negativo[4]” e “Le président brésilien Jair Bolsonaro testé positif[5].

Tratando, então, especificamente da língua portuguesa, como a expressão testar positivo aparece nas diferentes mídias brasileiras em relação ao diagnóstico da doença? No site da FAPESP, por exemplo, ela é encontrada para fazer referência ao diagnóstico de COVID-19, como em [6]“os pesquisadores vão se concentrar nas gestantes que testarem positivo para COVID-19”. Porém, muitas outras formas são utilizadas com a mesma finalidade: “resultado positivo”, “teste (ser) positivo”, “dar positivo”, “diagnóstico positivo”[7]. Há também expressões usadas entre os profissionais da Saúde, como: “caso positivo”, “PCR positivo”, “controle positivo”, “pacientes positivos” para COVID-19.

No que diz respeito especificamente à expressão testar positivo, nota-se que há variações como “testar”, “testou”, “testaram”, “foi testado positivo”, geralmente acompanhadas de “para a COVID-19”, como em “A equipe voltou à residência desse participante que testou positivo no RT-PCR (…) para avaliar outros quatro moradores da casa”[8].

Na plataforma da FAPESP, voltada para a divulgação científica, verificou-se a presença das variações da expressão testar positivo em 22,5% das ocorrências, aparecendo também o termo “resultado positivo”, com frequência de 18,5% do total. Isso demonstra uma leve predileção pelo uso da expressão vinda do inglês.

Na plataforma InformaSus, foram verificados poucos usos do termo “positivo”. Mesmo assim, as expressões testar positivo e “resultado positivo”, por sua vez, tiveram uma maior incidência – com aproximadamente 19% do total para cada uma delas.  Um exemplo disso pode ser verificado na publicação realizada em maio de 2020: “os pesquisadores relatam uma série de 5 casos de pacientes com menos de 50 anos que apresentaram manifestações neurológicas e alterações em exames de imagem compatíveis com quadro de AVC e que foram testados positivo para COVID-19”[9].

É importante salientar a maior variação das maneiras de se falar sobre o diagnóstico da COVID-19 encontradas nesses sites, como mostram os exemplos acima. Entretanto, entende-se que a expressão testar positivo também se estabiliza nos veículos de divulgação científica por sua maior frequência, ainda que menor do que na mídia de circulação geral.

No que diz respeito a essa última, o testar positivo aparece com maior frequência, totalizando quase 40% das ocorrências.  As variações foram: “dar positivo”, “resultado positivo” e “teste foi positivo”. Aparecem, exclusivamente na mídia de massa, “ter teste positivo” (com 12% dos resultados), “estar com COVID-19”, “ter exame positivo” e “resultaram positivo”. Muitos dos resultados do testar positivo referem-se a personalidades, sejam artistas, políticos, atletas, como se verifica em “Vinícius Popó, do Cruzeiro, testa positivo para a COVID-19 e é afastado dos treinos pelo clube mineiro”[10], “General Heleno testa positivo para coronavírus”[11] ou em “Eliana testa positivo para COVID-19”[12]. Em grande parte dos registros nesses usos, o verbo aparece no presente, o que torna a notícia sempre atualizada, não importando quando será acessada.

A grande circulação da expressão testar positivo relacionada a pessoas ou grupos que transitam na mídia, destaca a preocupação sobre a circulação do vírus nas classes privilegiadas. A questão, então, não é apenas o fato de que o vírus circula, mas por onde especificamente ele o faz. A diferença entre aqueles que têm acesso aos testes e aos que não têm, ou seja, entre quem “testa positivo” e quem nem mesmo realiza o teste, então, se materializa na circulação dessa expressão nos meios de comunicação , sendo mais um indício da grande desigualdade social do Brasil atual.

Além disso, testar positivo também apareceu na mídia de circulação geral em notícias de cunho científico sobre descobertas novas a respeito do vírus SARS-CoV-2, como em “Dados da OMS indicam que, a cada cem brasileiros que testam positivo para a doença, três não resistem”[13], assim como aparecem também nos meios de divulgação científica.  

Deve-se ressaltar que as palavras não aparecem sozinhas, mas sempre em conjunto com outras, seja encadeadas, formando frases, textos, de forma linear. Nesta linearidade, uma palavra associa-se a outra, manifesta uma atração privilegiada em relação às outras e torna-se difícil fracioná-la, funcionando em bloco, constituindo-se em conjuntos relativamente prontos, dos quais as pessoas se lembram facilmente. Entretanto, essa associação é criativa e imprevisível e, por isso, permite que expressões como o testar positivo apareçam e circulem.[14]

Entende-se que a situação de pandemia fez circular, e, de certa maneira, “pandemizou” o testar positivo. Seu uso não havia sido tão mobilizado antes porque sempre esteve vinculado a grupos específicos, como a sujeitos soropositivos durante a epidemia da Aids e a esportistas em casos de testes antidopings. A expressão testar positivo emergiu e se disseminou durante a pandemia de maneira intensificada, considerando inclusive o modo como essa crise sanitária afeta toda a população mundial.

No ambiente médico-hospitalar, circula a expressão “testar reagente”, que funciona de maneira distinta do testar positivo, visto que essa expressão pode gerar uma série de estigmas em relação a pacientes infectados com uma doença. A grande circulação do testar positivo na mídia de massa, portanto, é a materialização de que o sigilo da ética médica fica em segundo plano, contribuindo com uma maior exposição dos sujeitos.

O testar positivo coloca em evidência a discussão sobre a língua, na medida em que a expressão é uma tradução direta da língua inglesa, e pode produzir estranhamento. Os sentidos produzidos estão relacionados ao estranhamento de sua estrutura sintática, ao mesmo tempo em que estão relacionados com a exposição pública dos sujeitos que testaram positivo. A estabilização dessa expressão se dá por conta da efervescência e da intensificação de seu uso, que provocaram a grande circulação dos dizeres sobre tudo o que envolve a pandemia. Em um país de tamanhas desigualdades como o Brasil, o acesso ao testar positivo e o tratamento ao qual os sujeitos têm direito são, muitas vezes, privilégios daqueles que são personagens (ou personalidades) nas pautas da mídia de massa, que ali são expostos e, por isso, evidenciados. Para a maioria da população, invisibilizada, a possibilidade de fazer o teste é pequena, o que contribui com seu apagamento da malha social. No entanto, em uma pandemia, deveria ser mais importante saber – e divulgar – quantos testaram positivo, e não quem testou positivo.

 

NOTAS

[1] https://noticias.r7.com/jr-24h/boletim-jr-24h/videos/mais-de-26-milhoes-de-brasileiros-ja-testaram-positivo-para-covid-19-20082020. Acesso em: 09 out. 2020.

[2] Tradução decalcada e usada correntemente: ele testou positivo, ela testou positivo, eles testaram positivo. De acordo com o dicionário Oxford, uma das definições do verbo testar refere-se ao ato de “fazer o exame de sangue, de uma parte do corpo, a fim de encontrar o que tem de errado com uma pessoa, ou checar a condição de sua saúde” (tradução das autoras). Referência: https://www.oxfordlearnersdictionaries.com/definition/english/test_2. Acesso em: 31 ago. 2020

[3] https://www.parabolablog.com.br/index.php/blogs/ela-testou-positivo-que-sintaxe-e-essa. Acesso em: 31 ago. 2020.

[4] https://agencia.fapesp.br/investigaran-de-que-manera-el-nuevo-coronavirus-afecta-al-olfato/33260/. Acesso em: 9 out. 2020.

[5] https://www.lefigaro.fr/sciences/coronavirus-127-clusters-en-cours-d-investigation-en-france-bolsonaro-se-soumet-a-un-test-20200707. Acesso em: 9 out. 2020.

[6] https://revistapesquisa.fapesp.br/gestantes-e-bebes-tendem-a-apresentar-sintomas-leves-da-covid-19/. Acesso em: 9 out. 2020.

[7] Alguns exemplos: “Apenas 10 amostras apresentaram resultado positivo no teste sorológico e só uma no teste molecular” (https://agencia.fapesp.br/em-ribeirao-preto-apenas-12-da-populacao-foi-infectada-pelo-novo-coronavirus/33182/); “Os resultados dos testes agrupados das oito linhas e oito colunas podem revelar que há três grupos, por exemplo, com casos positivos.” (https://agencia.fapesp.br/testes-agrupados-podem-aumentar-a-capacidade-de-diagnosticar-a-covid-19/33416/); “Nenhum teste positivo foi registrado nas nove cidades estudadas…” (https://agencia.fapesp.br/epidemia-de-covid-19-avanca-de-forma-heterogenea-e-ainda-sem-controle-no-brasil/33264/”. Acesso em: 13 out. 2020.

[8] https://agencia.fapesp.br/em-ribeirao-preto-apenas-12-da-populacao-foi-infectada-pelo-novo-coronavirus/33182/. Acesso em: 09 out. de 2020.

[9] https://informasus.ufscar.br/alteracoes-neurologicas-e-covid-19-como-as-evidencias-cientificas-podem-nos-guiar/. Acesso em: 09 out. 2020.

[10] https://esportes.r7.com/lance/vinicius-popo-do-cruzeiro-testa-positivo-para-a-covid-19-e-e-afastado-dos-treinos-pelo-clube-mineiro-31052020. Acesso em: 9 out. 2020

[11] https://noticias.r7.com/politica/general-heleno-testa-positivo-para-coronavirus-18032020. Acesso em: 9 out. 2020

[12] https://entretenimento.r7.com/prisma/flavio-ricco/eliana-testa-positivo-para-covid-19-26062020. Acesso em: 9 out. 2020

[13] https://noticias.r7.com/saude/covid-19-e-tres-vezes-menos-letal-no-brasil-do-que-na-italia-31032020. Acesso em: 9 out. 2020

[14] KRIEG-PLANQUE, Alice. Analisar Discursos Institucionais. Trad. Luciana S. Salgado e Helena Boschi. Uberlândia: EDUFU, 2018.

 

Crédito da imagem: United Nations COVID-19 Response em Unsplash

Veja também:

Projeto: Enciclopédia Discursiva da COVID-19

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Autor

  • Fernanda Castelano Rodrigues

    Dados da editora: professora do Departamento de Letras da UFSCar desde 2008. Mãe, feminista, defensora dos Direitos Humanos, tem mestrado (2003) e doutorado (2010) em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela Universidade de São Paulo. Tem também especialização em Políticas para a Promoção da Igualdade na América Latina pela FLACSO/CLACSO (2018) e pós-doutorado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Participou da coordenação dos Módulos de Língua Portuguesa do Programa Mais Médicos para o Brasil (2013-2014). Foi diretora do Instituto de Línguas da UFSCar (2016-2017). Pesquisa no campo das Políticas Linguísticas, com especial interesse pelos Direitos Linguísticos de comunidades marginalizadas.

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