Bernardino Geraldo Alves Souto
Este texto de opinião é particular do autor.
Portanto, não relacionada a nenhuma instituição ou órgão ao qual pertença ou do qual participe.
Tem sido prática sistemática do governo brasileiro subtrair o SUS e as Universidades Públicas em todas as interfaces que envolvem, principalmente, o financiamento, a gestão e os recursos humanos. O resultado tem tornado o Brasil cada vez mais incapaz de lidar com sua rotina de necessidades sociais.
A epidemia da Covid-19, ao revelar agudamente esse fato, expõe também a falta de coordenação e gerenciamento nacional em relação ao seu combate. O Ministério da Saúde tem agido de modo ineficiente e ineficaz por meio de medidas limitadas a recomendações dissociadas da prática e do mundo real da assistência em saúde, deixando clara a ausência de uma gestão centralizada e organizada nacionalmente para o enfrentamento da epidemia. Além disso, em meio a intrigas políticas internas no âmbito do governo federal, absolutamente improdutivas e até irresponsáveis. Como conseqüência, cada Estado ou Município tem tentado reagir a seu próprio modo segundo os recursos que têm.
Nesse ambiente, o Ministério ainda sugere estratégias de distanciamento social destinadas apenas a embaçar a transparência do efeito da epidemia da Covid-19 sobre o desmonte crônico do sistema de saúde e outras instituições públicas. Neste momento em que a falta de profissionais, de insumos, de equipamentos de segurança e de condições de trabalho no SUS comprometem seriamente a situação nacional, propõe uma medida de distanciamento social claramente desvantajosa, contra a qual sugiro que se posicione a sociedade brasileira. Nesse caso, aponto o distanciamento social ampliado como alternativa.
Com a promessa de que investirá no SUS o que nunca investiu para que consiga suportar a epidemia da Covid-19, o governo propõe o distanciamento social seletivo, mediante o qual, segundo seu próprio Boletim[1],
“os grupos vulneráveis continuarão tendo contato com pessoas infectadas assintomáticas ou sintomáticas, ficando mais difícil o controle. Países como o Reino Unido começaram a fazer essa medida e teve que recuar diante da estimativa de aceleração descontrolada de casos sem o suporte do sistema. Torna-se temerário se as condicionantes mínimas de funcionamento: leitos, respiradores, EPI, testes laboratoriais e recursos humanos.” p. 7
A situação do país neste momento é grave e, ao invés de traçar uma ação programática específica vertical e radical de combate à epidemia da Covid-19, especialmente baseada em ações preventivas e de vigilância em saúde qualificada, o Ministério da Saúde propõe aos cidadãos brasileiros que se exponham ao Coronavírus e suas consequências até que o sistema de saúde esteja devidamente equipado para receber os doentes. Proposta essa feita, ainda, num contexto em que sequer existe um planejamento estratégico, uma garantia de acesso aos equipamentos necessários ou um cronograma para a conclusão da promessa de equipar o sistema de saúde.
Além disso, é patente que o investimento em recursos hospitalares em detrimento da adoção de medidas preventivas adequadas e da qualificação da vigilância em saúde é ineficiente contra qualquer problema de saúde pública, inclusive a epidemia da Covid-19. No momento atual, é importante investir nos dois, mas, se tiver de escolher somente um, certamente a prevenção e a vigilância em saúde são os que trarão os melhores resultados.
Por outro lado, já se contabilizam várias mortes de profissionais de saúde pela Covid-19, em grande parte por falta de condições de trabalho; e a vigilância em saúde sequer consegue contar ou estimar corretamente o número de infectados no país por estar insuficientemente equipada e organizada.
Entendo o problema socioeconômico que essa situação representa, mas, lembro que esse problema não tem na epidemia da Covid-19 sua causa, apenas sua agudização. Nesse sentido, o que faz com que o prejuízo socioeconômico dessa epidemia não seja menor é o sucateamento sistemático e progressivo imposto ao SUS e outras instâncias de interesse social no país, cuja recuperação é impossível de ser feita de maneira instantânea. Ao mesmo tempo, não é ético prometer aquilo que não se tem planejamento estratégico para o cumprimento em troca de vidas humanas.
O Brasil, devido à negligência social apontada, não tem como escapar das perdas que este momento impõe, as quais serão agravadas ainda mais pela medida de distanciamento social seletivo proposta pelo Ministério da Saúde.
Do ponto de vista técnico e operacional, a interrupção total das atividades (lockdown) é uma medida a ser adotada apenas em situação extrema, cumprível somente mediante autoritarismo sanitário. Além disso, viabiliza a recidiva da epidemia quando suspensa. O distanciamento social ampliado é o que mitiga a epidemia com redução do número de mortes e da sobrecarga do sistema de saúde. Entretanto, exige do sistema de saúde uma capacidade mínima de enfrentamento. Como nem essa capacidade mínima nós temos, devido ao sucateamento politicamente deliberado do SUS, o Ministério propõe a segunda pior medida que é o distanciamento social seletivo, potencialmente válida somente em situações de recrudescência da epidemia, em um momento em que estamos numa fase contrária, de ascensão da curva epidêmica.
Portanto, a proposta ministerial representa a desistência do governo de fazer frente à epidemia da Covid-19 no país.
Metaforicamente, é o comandante que, depois de combalir seu próprio exército, conclama a uma inaceitável rendição.
[1] Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Centro de Operações e Emergência em Saúde Pública. Doença pelo Coronavírus 2019 (COE-COVID-19). Boletim Epidemiológico 07. 06 de abril de 2020. Semana epidemiológica 15 (05-10 de abril). Disponível em: < https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/06/2020-04-06—BE7—Boletim-Especial-do-COE—Atualizacao-da-Avaliacao-de-Risco.pdf>. Acesso em 08/04/2020.
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