Autoria: Lucas Porto de Queiroz
Descrição da obra: A maneira como o pequeno Miguel, meu enteado de quatro anos, reagiu ao isolamento social imposto pela pandemia fez nascer esta crônica que, falando das memórias dele, fala também de nossas inquietações e anseios neste momento.
Expressão: Literatura
retidas
miguel tem quatro anos e quase todo dia nos pergunta se o vírus já foi embora.
outro dia ele ligou o ventilador na máxima potência e apontou pra ninguém: é pra voar bem longe o vírus, explicou.
como o sentido de uma palavra só se inteira quando irrompe na língua viva de
alguém, me pergunto até que ponto o vírus que ele tentou levar pra longe coincide com o que eu nomeio aqui ou com o que você concebe, quando a palavra desabrocha no seu falar.
o mesmo termo vírus impõe aflições muito diversas a depender da mente que o
cerca. as limitações impostas ao miguel são diferentes das minhas, que se distinguem das suas e assim por diante, de modo que o mundo está cheio do que parece uma só tristeza mas na verdade é um mosaico de muitas diferentes saudades. as do miguel são nada trágicas e até fazem sorrir. ele agora as expõe inserindo, ao final de uma sequência quase ininterrupta de desejos, a condição quando o vírus for embora. assim: aí a gente vai tomar sorvete, aí vai pra praia, aí vai pra casa da vovó e aí vai tomar açaí — quando o vírus for embora.
o pequeno aqui de casa é só mais um que deve estar cheio de memórias retidas,
todas esperando a hora de ganhar a rua, esparramar-se novamente por aí. é preciso muita memória nesse momento porque é dela que se alimenta a esperança. quem espera lembra.
de algum jeito, mesmo uma criança de quatro anos já intui que sem esse recurso à memória o ser humano se diminui, atrofia suas possibilidades e quase se assemelha aos demais bichos, que gozam a vida como um somatório de ações esbarradas no agora.
miguel está certo porque lembrar do sorvete, da praia ou da casa da vovó é uma maneira de pôr fé no tempo: o que foi pode voltar a ser. rememoramos pra fazer viver, no tempo, o que ainda não pode ser (ou nunca mais poderá ser), no espaço.
dia desses tive de ir até a casa de meus pais deixar na portaria do prédio em que
moram algum apetrecho ou remédio de que eles estavam precisando, já não me recordo. na volta tocava no rádio uma música dos anos 1980 que embalou muitas das festas que havia na antiga casa em que morávamos.
deixei-me inebriar pela canção supondo que assim só molharia os pés no passado. engano meu, miguel já intuíra: memória acossa é o que a gente tem pra ser ainda.