O reconhecimento é algo de suma importância para a saúde do trabalhador. Afinal, que trabalhador não espera ser reconhecido pelo trabalho que realiza? A relevância deste tema foi tratada pelo GT Saúde do Trabalhador, em homenagem à Semana Nacional de Enfermagem, e resultou na construção coletiva de um vídeo sobre como valorizamos os trabalhadores e trabalhadoras da Enfermagem, disponível neste post: Semana da Enfermagem 2021
A discussão sobre reconhecimento no trabalho surgiu na década de 90 na Psicodinâmica do Trabalho, tendo como autor de referência Christophe Dejours, a partir de desdobramentos da Psicopatologia do Trabalho.
O reconhecimento no trabalho se remete à intersubjetividade e às relações existentes no coletivo de trabalho e entre o coletivo e a organização. Ele é uma “forma de retribuição simbólica advinda da contribuição dada pelo sujeito, pelo engajamento de sua subjetividade e inteligência no trabalho” (LIMA, 2013, p. 351).
A retribuição inclui o sentido de gratidão pela contribuição coletiva à organização do trabalho, precedida pela constatação da contribuição individual desempenhada pelo trabalhador. Ela se caracteriza como julgamento de utilidade e de beleza por parte da organização, superiores hierárquicos e pares. Portanto, se trata de uma retribuição social e técnica, proferida na linha vertical e horizontal, relativa ao domínio do ofício e de suas artes, o que remete ao sentimento de pertencimento a um grupo profissional. Ela é fruto do espaço coletivo do debate do trabalho e das ressignificações que operam a legitimação da ação criativa para além da prescrição técnica. Inclui a cooperação, laços de confiança e mobilização da subjetividade. Nesse sentido, opera a inteligência corpórea e criativa, mobiliza afetos e possibilita a sublimação no trabalho, sempre aliada a um elevado grau de qualidade do trabalho.
Segundo Dejours (2004), o reconhecimento é a mediação privilegiada para tornar o sofrimento, concebido como inevitável face aos constrangimentos da organização e ao real do trabalho, em sofrimento criativo e prazer. A discussão do reconhecimento no trabalho da enfermagem sob tal perspectiva é realizada por Traesel e Merlo (2009). O reconhecimento é abordado no contexto do coletivo de trabalhadores, de modo a demonstrar a máxima dejouriana de que, por seu intermédio, o sofrimento no trabalho se transmuta em prazer e realização. Conforme apontam os autores, quando efetivamente há o reconhecimento, ocorre a preservação da saúde mental desse coletivo de trabalhadores e trabalhadoras.
O afeto e a interação são aspectos intrínsecos ao trabalho da enfermagem. A dedicação e o comprometimento são intensos e “não há limites claros para o início e o fim das atividades, o que faz com que a atuação profissional extrapole o próprio papel profissional” (TRAESEL; MERLO, 2009, p.104). Isso implica em uma linha tênue entre o sofrimento criativo, resultante do efetivo reconhecimento do enfrentamento dos imprevistos do real do trabalho, mobilizador da inteligência prática e corpórea, e o sofrimento patogênico, relacionado ao desgaste, resultante de injunções organizacionais paradoxais que, via de regra, impedem aquilo que exigem e fraudam o reconhecimento. A dedicação cuja retribuição simbólica é efetiva (reconhecimento) se distingue da abnegação cujos esforços se dão sob os ditames do trabalho precarizado, intensificado e da malversação da psicodinâmica do reconhecimento. Se os “espaços para o reconhecimento são limitados” e as “formas de expressão do mesmo encontram importantes barreiras”, o sofrimento não se transmuta em prazer e realização (TRAESEL; MERLO, 2009, p.105). Se a cooperação, os laços de confiança e a solidariedade da equipe são fundamentais para o trabalho sublimatório, dotado de sentido e compatível aos ideais éticos e políticos dos trabalhadores e trabalhadoras, o reconhecimento tão somente se efetiva quando a gestão e organização do trabalho são permeáveis às contribuições que esse coletivo cria diante das inevitáveis lacunas das prescrições.
O envolvimento com o trabalho compartilhado pelos pares e os agradecimentos e a gratidão expressos pela população assistida são tão necessários como insuficientes para a valorização do trabalho, se a compreendemos sob a perspectiva de reconhecimento dejouriana. Para que haja o reconhecimento e a preservação da saúde das trabalhadoras e trabalhadores da enfermagem, é necessário transformações dos modelos organizacionais, da rigidez das prescrições e dos modelos de avaliação de desempenho e eficácia. Os deslocamentos do sofrimento patogênico para o sofrimento criativo, da servidão para a emancipação, como nos ensina Dejours (2012), exigem o espaço da palavra e a autonomia coletiva.
Frente aos impasses do real do trabalho na área da saúde, somente o coletivo autônomo e reconhecido pode oferecer respostas que sejam, ao mesmo tempo, resolutivas, protetoras e promotoras da saúde dos profissionais e usuários. Assim, urge despertarmos e mobilizarmos nas organizações hospitalares e no conjunto dos serviços de saúde, os espaços de efetivo reconhecimento das contribuições dos sujeitos e dos coletivos à organização do trabalho.
Referências:
DEJOURS, C. Análise psicodinâmica das situações de trabalho e sociologia da linguagem. In: SZNELWAR, Laerte Idal; LANCMAN, Selma (orgs.). Christophe Dejours: Da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro: Fiocruz, Brasília: Paralelo 15, cap. 7, p.197-241,2004.
DEJOURS, C. Trabalho vivo: trabalho e emancipação. Brasília, Paralelo 15, v.2, 2012.
LIMA, S. C. da C. Reconhecimento no trabalho. In: VIEIRA, F. de O.; MENDES, A. M.; MERLO, A. R. C. (orgs.). Dicionário Crítico de Gestão e Psicodinâmica do Trabalho. Curitiba: Juruá, p.351-355, 2013.
TRAESEL, E. S., MERLO, A. R. C. A psicodinâmica do reconhecimento no trabalho da enfermagem. Psico., v. 40, n. 1, p.102-109, 2009.
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Autores
Eduardo Pinto e Silva
Cristiane Shinohara Moriguchi de Castro
Revisoras
Fernanda Maria de Miranda
Priscilla Viégas Barreto de Oliveira
Vera Regina Lorenz
Vivian Aline Mininel
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