A organização do Sistema Único de Saúde (SUS) em níveis hierarquizados, planejados e distribuídos a partir de regiões e populações definidas, considerando a singularidade de suas necessidades, está de acordo com as diretrizes colocadas pela Constituição Federal de 1998 de descentralização político-administrativa da gestão em saúde, atendimento integral, e participação das comunidades no desenvolvimento das ações. Esse modelo organizacional pressupõe uma concepção ampliada sobre a saúde: “saúde” como direito de todos os cidadãos e dever do Estado, “saúde” para além da ausência de doença.

Definida pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS) como elemento fundamental na construção de modelos de assistência mais equânimes e eficazes, a Atenção Primária à Saúde (APS) – representada pelas Unidades Básicas de Saúde (UBS), Núcleos de Apoio a Saúde da Família, Consultórios de Rua, Centros de Convivência e Cultura, entre outros – configura não só uma porta de entrada no sistema, mas um espaço privilegiado para o acolhimento da pessoa em sofrimento e para a construção de vínculo longitudinal, ambas diretrizes estabelecidas pela Política Nacional de Humanização (2003). 

Design por Amanda Penetta

A APS tem como atributos o acesso, a integralidade do cuidado, a oferta de cuidado ao longo do tempo (longitudinalidade) e a coordenação do cuidado, ou seja, funciona como porta de entrada no sistema de saúde em cada novo problema dos indivíduos e famílias ou nas crises de problemas crônicos.  Isto é, para além de um processo de triagem e encaminhamento, cabe à atenção básica escutar ativamente as queixas trazidas pelo usuário e prestar um atendimento resolutivo, desenvolvendo um Projeto Terapêutico Singular, que leve em consideração não somente as manifestações da doença no corpo, por meio dos sintomas, mas também as representações e desejos do usuário sobre os processos que ele vive, sua rede de relações, dados epidemiológicos do território, etc. Buscando coordenar o itinerário deste usuário na Rede de Atenção à Saúde (RAS) (Satrfield, 2002; OPAS, 2011).

As demandas em saúde mental são muito comuns na atenção primária. Uma investigação conduzida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) na década de 1990, confirmou uma alta prevalência dos chamados Transtornos Mentais Comuns – quadros diferentes dos comumente atendidos em ambulatórios especializados – no nível primário (Pereira & Vianna, 2009). Estudos a respeito desses tipos de transtornos indicam que aproximadamente 20% da população apresenta algum tipo de sofrimento psíquico que necessitaria de atenção profissional (Fonseca, Guimarães e Vasconcelos, 2008 apud Campos, 2011). 

Considerando a posição estratégica que a APS ocupa em um modelo de atenção à saúde que organiza seus serviços a partir do território em que eles se inserem, adaptando os serviços às necessidades da população, e não o contrário; o nível primário é fundamental no planejamento de ações em saúde mental eficazes e humanizadas, que estejam de acordo com os princípios do SUS e da Reforma Psiquiátrica, tendo sempre a desinstitucionalização e a autonomia do usuário como horizonte na construção de um modelo de assistência que compreenda os fenômenos de saúde e adoecimento como determinados por múltiplos fatores e por múltiplos agentes.

O acolhimento, nesse sentido, não corresponde somente a uma etapa inicial do atendimento, mas deve estar presente ao longo de todo o processo de atenção à saúde. Isso implica que a Atenção Primária se responsabilize pelo acompanhamento contínuo dos usuários e suas demandas, mesmo que se verifique a necessidade de encaminhamento. Ou seja, a existência da atenção primária não substitui os serviços de atenção secundária ou terciária; pelo contrário, entende-se que deve haver uma boa articulação entre todas as instâncias da rede a fim de efetivar o cuidado integral. Contudo, o referenciamento do usuário para um serviço especializado, como o Centro de Atenção Psicossocial, não deve resultar na perda de vínculo com a APS, com o território e com a comunidade.

Desse modo, dispositivos como o matriciamento das equipes de Saúde da Família por núcleos de referência, mostram-se fundamentais para a promoção de uma assistência qualificada, potencializando a responsabilização das equipes pelos casos, contribuindo para a desfragmentação entre as unidades da rede e para continuidade da adesão dos usuários ao tratamento (Campos, 2011), prezando pela autonomia destes e pelo cuidado em liberdade.Vale lembrar que a estratégia do apoio matricial vem sofrendo duros ataques por parte do governo Bolsonaro, como o corte da base de incentivo federal aos Núcleos Ampliados de Saúde da Família (NASF), ainda em 2019, e a nota técnica emitida em janeiro de 2020.

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Considerando os resultados de ampla investigação científica sobre a temática e experiências exitosas por parte de profissionais e usuários, entende-se a importância do papel desempenhado pela APS no cuidado em saúde mental, organizado de acordo com as propostas do Programa de Saúde da Família. Apesar de enfrentar muitos desafios, como o subfinanciamento crônico do SUS em âmbito federal e o atual cenário de flexibilização dos contratos de trabalho, ela possibilita a construção de um modelo de assistência em saúde mental que efetivamente concretize os direitos garantidos pela Constituição de 1988, em oposição à lógica manicomial presente na proposta feita pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), marcada pelo isolamento social e pela cronificação das pessoas em sofrimento psíquico.

 

Referências: 

Onocko, Rosana et al . Saúde mental na atenção primária à saúde: estudo avaliativo em uma grande cidade brasileira. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro ,  v. 16, n. 12, p. 4643-4652,  Dec.  2011 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232011001300013&lng=en&nrm=iso>. access on  12  Dec.  2020.  https://doi.org/10.1590/S1413-81232011001300013.

CORREIA, Valmir Rycheta; BARROS, Sônia; COLVERO, Luciana de Almeida. Saúde mental na atenção básica: prática da equipe de saúde da família. Rev. esc. enferm. USP,  São Paulo ,  v. 45, n. 6, p. 1501-1506,  Dec.  2011 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-62342011000600032&lng=en&nrm=iso>. access on  12  Dec.  2020.  https://doi.org/10.1590/S0080-62342011000600032.

PEREIRA, Alexandre de Araújo; VIANNA, Paula Cambraia de Mendonça. Saúde Mental. Belo Horizonte: Nescon/UFMG, Coopmed, 2009.

https://www.redehumanizasus.net/sites/default/files/diretrizes_e_dispositivos_da_pnh1.pdf

https://outraspalavras.net/outrasaude/o-fim-do-nasf-a-estrategia-de-apoio-ao-atendimento-na-atencao-basica/

 

Texto escrito por:
Luana Mota Oliveira. Estudante do 2º ano de Psicologia na UFSCar. Membra da Liga Acadêmica de Saúde Mental (LASM). Membra do Centro Acadêmico da Psicologia (CAPsico).

Revisão:
Cecília Malvezzi. Médica de Família. Mestre em Demografia pelo NEPO/Unicamp. Professora do Departamento de Medicina da UFSCar.

 

Créditos da imagem: Mateus Pereira no Fotos Públicas

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Autor

  • Larissa Campagna Martini

    Professora do Departamento de Medicina e do Programa de Pós-Graduação em Gestão da Clínica, ambos da Universidade Federal de São Carlos. Formada em Terapia Ocupacional, com Doutorado em Psiquiatria e Psicologia Médica pela UNIFESP. Áreas de atuação: Saúde Mental, Trabalho e Saúde, Inclusão no Trabalho e Atenção Básica.

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