Há algumas semanas, recebi um convite das organizadoras do evento online “Entre raízes e espinhos: debates acerca da discriminação racial no Brasil”, realizado pelo Centro Acadêmico de Terapia Ocupacional da UEPA, para participar de uma mesa de debates. A pergunta a ser respondida era: “Por que as pessoas negras são as que mais morrem de COVID-19?”. Essa pergunta foi motivadora para a reflexão proposta neste texto a partir de diálogos com o colega Iberê Araújo, com quem compartilho a coautoria deste breve artigo de reflexão.

Quanto mais olhamos para essa pergunta, mais complexa e distante nos parece a chegada a uma resposta fechada e objetiva. Obviamente, dentre tantos fatores causais, o racismo se ergue como pilar central nessa discussão. No entanto, responder simplesmente “por causa do racismo” parece condicionar uma resposta, que deveria ser longa, complexa, histórica, social e cultural, à simplificação confortável para as pessoas que estão em seus lugares de privilégio e não têm a menor intenção de deslocar-se para olhar para as questões estruturantes do racismo à brasileira.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que pessoas negras (e indígenas) sempre foram as que mais morreram neste país, desde que europeus se acharam no direito de roubar uma terra (todo um continente), genocidar e sequestrar sua população originária, desterritorializar e escravizar populações de outro continente nestas terras. De acordo com a coleção “Brasil 500 anos” lançada pelo IBGE, estima-se que mais de um milhão e meio de indígenas foram assassinados no Brasil após a invasão portuguesa.

Com relação à população negra, que foi raptada e trazida à força em porões de navios, da África até as Américas, para ser escravizada pelos brancos europeus, os “novos donos” de uma terra roubada, estima-se que foram transportados mais de quatro milhões de pessoas negras de 1500 até meados de 1800. Desse tráfico humano, cerca de dois milhões desembarcaram no Brasil, e os outros dois milhões morreram durante o trajeto em alto mar. 

Durante mais de trezentos anos, mais de três séculos, negros tiveram sua vida capturada pelo utilitarismo: enquanto estavam ativos no trabalho, serviam para alguma coisa. À medida que se desgastavam, estavam prontos para morrer. W. E. B. Du Bois, intelectual negro estadunidense, diz que a escravização provocou danos irreparáveis à própria noção de humanidade. Uma vez que colocamos preço e durabilidade para o sangue preto, naturalizamos a desumanização das pessoas que não pertencem ao grupo hegemônico branco. 

Até aqui, já contabilizamos, no mínimo três milhões e meio de assassinatos de pessoas não brancas e, no mínimo, a exploração utilitarista de mais de dois milhões de vidas negras, e nem estamos falando de coronavírus ainda. 

É certo que a naturalização da escravização de negros estabeleceu um regime bastante “clarosobre quem são os corpos que merecem e devem ser explorados para o bem da humanidade. (E, não se engane, a humanidade é branca, apenas). 

Ao primeiro sinal de humanização dos regimes de trabalho nas fazendas e lavouras, negros foram renegados para oferta de trabalho para outros brancos que estavam imigrando para o Brasil em busca de uma oportunidade de melhorar de vida. Obviamente, as condições de “melhoria de vida” são de exclusividade para o acesso branco. Assim, instala-se uma política, diga-se de passagem, uma política de cotas, para que imigrantes europeus venham trabalhar no lugar de escravizados, mas não como escravizados, e sim como trabalhadores assalariados e, em alguns casos, até como proprietários de terras. 

Assim, como Florestan Fernandes bem disse, aos negros resta a “própria sorte”, ocupando porões de casarões abandonados e submetendo-se a trabalhos mais precários, os quais os brancos imigrantes não têm interesse em realizar.

Os casarões viraram grandes aglomerados de barracos, que hoje chamamos de favelas, e as pessoas negras continuam realizando os trabalhos mais precários que os brancos não querem realizar. De acordo com o IGBE, mais de 70% das pessoas mais ricas do país são brancas. E mais de 75% das pessoas mais miseráveis são negras. Com relação à escolaridade, 79% da população branca entre 18 e 24 anos acessam formação em nível superior, enquanto 50% da população negra, nessa mesma faixa etária, acessam a universidade. Quase 70% dos cargos de gerência e direção em empresas são ocupados por pessoas brancas, enquanto os cargos ocupados por pessoas negras não chegam a 30%. 

Pelo menos 40% da população negra vivem com renda abaixo da linha da pobreza (com menos de 5,5 dólares/dia, cálculos de 2011). Enquanto, aproximadamente 18% da população branca vivem na mesma situação. A média percentual de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza da população brasileira em geral é 30%. 

Pelo menos 45% da população negra vivem sem, no mínimo, um tipo de saneamento básico (entre coleta de lixo, abastecimento de água e/ou rede de esgoto). Para a população branca, essa taxa é em torno de 27%. 

Com relação à taxa de homicídio, morrem quatro vezes mais homens negros do que com relação aos brancos, e pelo menos o dobro de mulheres negras com relação às brancas. 

Olhando para todos esses fatos enumerados isoladamente, pode parecer que não há nenhum tipo de relação com o assunto central da pergunta “Por que pessoas negras morrem mais de COVID-19?”, e daí que emerge a necessidade de uma explanação complexa (e provavelmente incompleta, pela impossibilidade de esgotar esse assunto num único texto), que não pode ser reduzida e simplificada ao racismo. É preciso que a gente enxergue, entenda e repita os motivos incansavelmente para que, minimamente, sejam alcançados regimes de visibilidade para todas as consequências do racismo.

 

Design por Ana Paula de Lima

 

A primeira morte de COVID-19 registrada no Brasil foi de uma mulher negra. Cleonice Gonçalves, mulher negra, de 63 anos, idosa, empregada doméstica, morreu após ter sido contaminada com o coronavírus pela sua patroa, que tinha viajado à Europa. Cleonice não foi à Europa. Cleonice tinha 63 anos e trabalhava como empregada doméstica. Cleonice, mulher negra e pobre, aos 63 anos, não estava em casa aposentada com seus netos, estava limpando o chão de uma mulher branca que viajava para Europa. (Quanto mais vezes você ler essa notícia, pior ela vai parecer). 

Para as mulheres negras, além da violência de estupro, nada está mais condicionado à colonização do que o serviço doméstico. As pretas da casa dos senhores não deixaram de existir. Não à toa, no ano de 2020, pelo menos duas mulheres negras foram resgatadas de situações análogas à escravização, e mais uma no início de 2021: as três exploradas por professores universitários brancos. Um abismo desumano com relação a trabalho, renda, educação e saúde já poderia ser apresentado com base apenas nessas três situações.

E falando em professor universitário, enquanto o serviço doméstico realizado pelas mulheres negras para manutenção das casas brancas foi considerado serviço essencial na pandemia, a categoria “Pesquisadores, intelectuais e professores universitários” ocupa mais de 50% dos cargos que foram possibilitados de trabalhar no regime home office. Se retomarmos os dados sobre educação da população brasileira, podemos afirmar, com tranquilidade, que esse público é majoritariamente branco. Entre os empregos com menores taxas de home office, encontramos operadores de máquinas e trabalhadores do campo, da caça e da pesca que, juntos, não constituem 1% da população trabalhando remotamente. Todas são profissões majoritariamente realizadas por pessoas negras. 

No que tange as profissões de maior risco para contaminação de COVID-19 hoje, para além dos profissionais da saúde e da linha frente, temos os entregadores de aplicativos. Estima-se que essa categoria profissional seja constituída por 71% de jovens negros. Entre um lockdown e outro, a comida dos brancos é garantida através do trabalho negro. Trabalho o qual é extremamente precarizado e está muito aquém de qualquer direito ou dignificação trabalhista. Além disso, é quase diário o que encontramos de vídeos e relatos em redes sociais de pessoas negras, principalmente homens negros jovens, que foram humilhadas, hostilizadas e ameaçadas dentro de condomínios chiquérrimos, porque a branquitude enriquecida brasileira não suporta a presença nem dos pretos que lhes prestam serviços. 

E por falar em serviços prestados, precisamos ainda mencionar o trabalho mais essencial da linha de frente: a faxina dos hospitais, que recai quase que completamente sobre as costas de mulheres negras. Sem mencionar a falta de reconhecimento dessas profissionais e o alto risco ao qual estão colocadas, também são as profissionais que recebem menos insumos de proteção. 

No âmbito da proteção, diariamente veicula-se nas mídias e redes sociais a extrema necessidade de nos mantermos limpos, assim como mantermos ambientes e coisas higienizadas para reduzir a probabilidade de contágio e disseminação do vírus. Se lembrarmos que 45% da população negra vivem sem pelo menos um tipo de saneamento básico, é possível dizer que pelo menos 45% da população negra não têm condições mínimas de habitação para manutenção da higiene pessoal e de higiene comunitária. Em alguns casos, sequer água para fazer a tão importante higienização das mãos. Enquanto a classe média brasileira esfrega os pacotes de arroz e de bolacha que comprou no super mercado, metade da população negra e pobre não tem água e sabão para lavar as mãos.

Além da higienização das mãos, uma boa alimentação é constantemente recomendada para manutenção de uma saúde forte, o que ajuda no enfrentamento do vírus, no caso de contágio. Em 2018, 40% da população negra viviam com rendimentos abaixo da linha da pobreza. Em 2020, com a taxa de desemprego batendo recordes, mais todos os sistemas socioassistenciais sobrecarregados e muitos projetos de organizações da sociedade civil interrompidos pela pandemia, a fome volta a protagonizar como um dos maiores problemas entre a população negra. 

Nesse sentido, a Coalizão Negra por Direitos vem fazendo um trabalho de excelência e em exaustão para garantir a distribuição de cestas básicas às famílias que enfrentam a fome diariamente. A seguridade alimentar, no contexto do preto, pobre, brasileiro, se vestiu de insegurança alimentar e permaneceu. Enquanto isso, o Governo Federal fez o possível para dificultar o acesso dessas mesmas famílias ao Auxílio Emergencial. Ao mesmo tempo, juízes, militares, e outras funcionalidades públicas recebem o auxílio sem mesmo preencher os requisitos mínimos para isso. 

O Auxílio Emergencial de R$600,00 no ano passado não seria suficiente para comprar uma cesta básica este ano, que chegou a bater R$640,00 no estado de São Paulo. Tendo em vista que esses seiscentos reais não era suficiente, o Governo Federal decidiu que as parcelas do auxílio para 2021 terão o valor máximo de R$250,00. Não duzentos e cinquenta a mais que o ano passado, apenas R$250,00. Se duas famílias juntarem suas parcelas de auxílio, elas não conseguirão comprar uma cesta básica. Emicida faz todo sentido quando canta “tudo que nóis tem é nóis”, e mais nada.  

Não vou me ater a criticar outras posturas de governo, como negacionismo, não uso de máscara, tentativa de veto de lockdown e incentivo à aglomeração, porque essas questões deveriam estar sendo processadas como crime contra saúde pública. Não há discussão possível a ser feita nesse âmbito. 

A essa altura do texto, eu já não sei quantos motivos foram enumerados, nem quantos ainda faltam para ser enumerados. Mas gostaria de trazer pelo menos mais um assunto no âmbito da saúde que é pouquíssimo abordado: pessoas negras no Brasil têm a maior taxa de hipertensão e, consequentemente, problemas cardíacos. O que pouca gente diz sobre isso e que, aliás, poderia ser tratado como óbvio é: uma população que vive na mira da pobreza, da fome, do desemprego, da exploração, do racismo e, claro, da bala, certamente vive sob tensão e estresse. E daí, a causa óbvia para a hipertensão e para a conformação do grupo de risco para a COVID-19. 

E por falar em bala, mais uma chacina, em uma operação policial não autorizada, deixa, no mínimo, 29 corpos pretos ensanguentados no chão na favela do Jacarezinho.

Por fim, e nem um pouco menos importante, gostaria de mencionar o teatro do representativismo na vacinação: Mônica Calazans, primeira pessoa a ser vacinada no Brasil, mulher negra e enfermeira. Mônica não foi a única pessoa negra a ser colocada frente a um palco do representativismo fake. Em alguns estados/cidades, o palco foi montado também para mulheres e homens indígenas serem os primeiros vacinados. Enquanto uma parte da esquerda branca emocionada comemora nas redes sociais esse teatro, a comunidade quilombola foi retirada do grupo prioritário de vacinação, comunidades indígenas receberam do exército, em operação oficial, caixas e caixas de cloroquina para o famoso e mentiroso “tratamento precoce” e, enquanto mais de 50% da população vacinada são de brancos, nós, negros, mesmo sendo 56% da população brasileira, nos contentamos com uma taxa de vacinação de menos de 20%. 

Obviamente, contribui para esta porcentagem dois fatores:

1. os profissionais da saúde que foram os primeiros vacinados são de maioria com formação em nível superior e, portanto, brancos;
2. a população negra acima dos 80 anos é significativamente menor que a população branca, uma vez que as condições de envelhecimento para a população negra são muito precárias. 

Sem mais a considerar, por ora, mas com certeza com muitos outros fatores ainda a serem discutidos e explanados, a conclusão a que podemos chegar é apenas uma: “Por que as pessoas negras são as que mais morrem de COVID-19?”. Porque as pessoas negras são as que mais morrem, e ponto final.

 

Design por Ana Paula de Lima

 

Texto de Leticia Ambrosio e Iberê Araújo

Referências:

  1. GONZALEZ, Lélia. RACISMO E SEXISMO NA CULTURA BRASILEIRA. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
  2. Todas as informações sobre essa coleção podem ser encontradas no site interativo do IBGE, através do link:  https://brasil500anos.ibge.gov.br/.
  3. DuBOIS, W. E. B. Black reconstruction in America 1860-1880. New York: Free Prees, 1992.
  4. FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. 1965.
  5. IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, v. 41, 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101681
  6. Para acompanhar e fazer doações: https://www.temgentecomfome.com.br/
  7. Principia, música de Emicida.

 

Crédito da imagem: Royalty Free Image em Rawpixel 

 

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Categoria: Saúde da População Negra

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Autor

  • Leticia Ambrosio

    Terapeuta Ocupacional, mestra em Terapia Ocupacional pelo PPGTO -UFSCar, e doutoranda no PPGTO -UFSCAR. Pesquisa temáticas relacionadas à raça, gênero, sexualidades e estudos pós-coloniais. Tem experiência com juventudes, cultura, saúde mental e deficiência intelectual.

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