Por Lafayette Batista Melo e Mariana Morales da Silva
Pan-de-mi-a. Substantivo feminino singular. Palavra de origem grega, que significa “todo o povo”[1]. O termo pandemia pertence a um sistema de classificação típico de discursos da epidemiologia e é usado para referir o nível de gravidade e preocupação que se deve ter em relação a uma doença e sua transmissão.
A entidade legitimada para decretar situação de pandemia é a Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 11 de março de 2020, a OMS decretou a disseminação e propagação da COVID-19 como pandemia[2] e, a partir dessa declaração, surgiram muitos discursos, debates, matérias e afirmações sobre diferenças entre termos relacionados à pandemia[3].
Esses discursos, porém, oscilam ao usar três diferentes termos: surto, epidemia e pandemia. Outros ainda, acabam por se somar a esses, reforçando a complexidade do atual contexto, como com o uso do termo “sindemia”, por um lado, e, por outro, acentuando ainda mais as polêmicas, como com o termo “gripezinha”. Observa-se na mídia brasileira e internacional uma disputa de termos ora oriundos do discurso científico, ora do discurso político, reivindicando cada qual uma narrativa distinta sobre o atual contexto, engendrando polêmicas que colocam em disputa diferentes posicionamentos, podendo até chegar a instaurar polarizações. O certo é que discursos são incorporados no cotidiano das pessoas e as tênues, e por vezes espinhosas, relações tecidas entre eles podem deixar de ser questionadas, naturalizando aspectos profundos ou até banalizando o inimaginável.
Considerando os termos oficiais da escala epidemiológica, é importante destacar que o uso de cada termo varia conforme o estágio de disseminação da doença, o que leva ao deslocamento necessário do uso de um a outro no sistema de classificação. Assim, em uma escala que vai do menor ao maior, existe a seguinte ordem: surto, epidemia e pandemia.
De acordo com o médico e professor, Gustavo Nunes de Oliveira (DMed/UFSCar), surto é um termo usado quando surgem novos casos de uma doença, seja uma nova doença ou uma que ressurgiu. A classificação da disseminação de uma doença em surto ocorre quando sua propagação está restrita a uma localidade que, inicialmente, seria a sua região de origem. Trata-se de um contágio rápido com transmissão dentro de uma localidade, mas que se controla ou se limita a essa região; ainda de acordo com Oliveira, quando uma doença se propaga para fora da localidade controlada, seguindo a cadeia de transmissão entre humanos, a classificação passa de surto a epidemia; e a ampliação dos contágios da doença, atingindo diferentes países e vários continentes, com transmissão contínua entre humanos, seja ascendente ou persistente, pode receber a classificação de pandemia. O uso desse último termo marca, assim, um altíssimo nível de gravidade, preocupação e seriedade com que se deve tratar não só a doença, mas a crise sanitária que se desencadeia com ela.
Nos usos do dia-a-dia, em discursos cotidianos, políticos, jornalísticos etc., porém, vemos uma certa profusão de usos que marcam posicionamentos ideológicos distintos, compondo uma escala de gradação político-ideológica.
Não é raro encontrar, em discursos jornalísticos e até de divulgação científica, uma mescla de usos de pandemia e epidemia. Dois termos que aparecem, às vezes em um mesmo texto[4], como se fossem sinônimos e como se não houvesse uma alteração de sentidos no uso de um ou outro. Além de contribuir para a disseminação de informações confusas e, às vezes, errôneas, o uso indiscriminado desses termos pode levar a um reducionismo, intencional ou não, da gravidade da situação.
Pode-se dizer, ademais, que o uso de determinados termos no contexto atual, já comuns no cotidiano, sugere uma drástica oposição aos sentidos que teria o termo pandemia. Tomemos como exemplo o uso de “gripe”, que tem sido bastante recorrente no senso comum. O termo “gripe” se utiliza, em geral, para fazer referência a uma versão muito atenuada de alguns dos sintomas da doença causada pelo novo coronavírus e seu uso nada contribui para se perceber a dimensão e a proporção da gravidade da COVID-19. Em outras palavras, o uso do termo “gripe” faz parte dos usos cotidianos e rotineiros traz um sentido de uma doença comum, dentro de certa normalidade, conhecida e administrável. Ao reafirmar o uso do termo “gripe”, em detrimento do termo pandemia, perde-se a percepção da gravidade da situação e, consequentemente, da seriedade com que a doença e seus fluxos de contágio devem ser considerados em termos de políticas de saúde pública.
A questão do uso de diferentes termos se torna ainda mais grave quando de “é apenas uma gripe”, ocorrem deslocamentos para o termo “gripezinha”. O uso do sufixo “-inha”, que caracteriza construções de diminutivos, altera a palavra não apenas em termos morfológicos, ou seja, em sua forma, mas provoca, nesse contexto, o sentido de desprezo. Essa forma de minimizar a doença e suas consequências se materializa na oposição de gripezinha a pandemia, operando como uma polarização: os discursos que enfatizam, com o uso do termo pandemia, uma questão que deve tratada com seriedade e gravidade, entram em confronto com os discursos que insistem no uso de “gripezinha”[5].
O discurso que permite a circulação e a propagação do termo gripezinha e seus sentidos, está alicerçado nas ideias de, por um lado, inexistência da doença, do vírus e da situação de pandemia, caracterizando, assim, um discurso negacionista e, por outro lado, baixa gravidade da atual circunstância, podendo dispensar pouca relevância ao assunto. Estes posicionamentos se alicerçam, em geral, em discursos falaciosos que se valem de alguns poucos fatos cientificamente comprovados, mobilizados de tal forma que passam a ser usados para deturpar a realidade e a própria legitimidade do discurso da Ciência.
Ao ir na contramão das declarações da OMS, que não deixou, em nenhum de seus pronunciamentos, de marcar a crise sanitária decorrente da COVID-19 como pandemia, o uso do termo “gripezinha” produz um sentido de despreocupação e, por isso, justifica o descompromisso, materializado na ausência de políticas públicas nacionais para o combate à COVID-19. Nesse sentido, o Brasil vivencia ações descompassadas, descoordenadas e descentralizadas: cada estado ou cada município, sem uma política de ação nacional comum, toma uma postura sem diálogo com o todo e sem recursos destinados a uma ação unitária. Esse cenário já levou o país a ocupar a 3ª posição no ranking mundial de contágios pelo coronavírus e a 2ª posição no ranking mundial em mortes por COVID-19, em uma escala persistente de transmissão do vírus.
“Depois da facada, uma gripezinha não vai me derrubar”[6]. A polêmica frase parece ilustrar um discurso negacionista que, com a evolução da pandemia, dá lugar a discursos de minimização: “Ele [atual presidente do Brasil] ainda garantiu que, devido ao seu histórico de atleta, não enfrentaria problemas caso fosse contaminado. ‘Caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho’”[7]. Neste segundo exemplo, se insiste no uso do termo “gripezinha” e a própria negação do vírus dá lugar ao seu reconhecimento. Não há, no entanto, destaque para sua importância ou sua gravidade, notadas nos índices de mortalidade pela doença em pessoas idosas ou com outros comprometimentos de saúde. Junto ao tom de chacota que o enunciado demonstra, dados estatísticos e científicos surgem como se fossem exceção à regra. A regra, neste caso, representa, na verdade, uma nação que sofre com as graves desigualdades sociais que levam a maior parte da população a acumular, em seus históricos médicos, uma série de doenças crônicas, além das dificuldades de acesso a serviços básicos de saúde e saneamento que garantiriam a dignidade mínima da condição humana, tornando, assim, realidade brasileira cotidiana e pronunciamento presidencial cenários completamente incompatíveis.
Mais do que opor “histórico de atleta” a comorbidade, o médico e antropólogo Merrill Singer, ao inscrever o termo “sindemia”, alerta para o fator das “disparidades sociais” que torna o atual contexto pandêmico extremamente mais complexo. O termo “sindemia” refere-se a uma situação pandêmica na qual “duas ou mais doenças interagem de tal forma que causam danos maiores do que a mera soma dessas duas doenças (…). O impacto dessa interação também é facilitado pelas condições sociais e ambientais que (…) tornam a população mais vulnerável ao seu impacto”[8].
É possível entender, com isso, que a noção de sindemia adiciona consciência e aprofundamento da crise social à crise sanitária, levando os índices da pandemia a serem ainda mais altos em países como o nosso. Não por acaso é a população negra a mais atingida pela taxa de mortalidade pela COVID-19 no Brasil[9].
Embora o termo sindemia não seja novo, não tem tido grande circulação, mesmo no atual contexto, e o que se percebe é que não é necessário substituir o termo pandemia por sindemia para marcar a existência não apenas de uma crise, a sanitária, mas de crises plurais. Um exemplo é o uso repetido, constante e massivo do termo pandemia, presente em discursos científicos e de divulgação científica que têm demonstrado um posicionamento ideológico-político de resistência em relação às investidas presidenciais.
Também no discurso midiático o uso do termo pandemia circula massivamente para marcar as consequências relacionadas à crise sanitária em outras esferas, aproximando-se bastante à noção do conceito de sindemia. Alguns exemplos desses usos são: “Ciência e inovação contra a pandemia”[10], “Saldo da pandemia incluirá também obesidade, depressão e alcoolismo”[11], “Pandemia: 42% dos alunos podem abandonar faculdades privadas”[12], “Desigualdade de gênero e a Violência contra a mulher no contexto da pandemia do coronavírus”[13], “Liderança Terena denuncia situação da comunidade [indígena] na pandemia”[14], “Os Direitos Sociais no contexto da pandemia: sobre o Auxílio Emergencial”[15], “Sociologia do trabalho ajuda a compreender como pandemia impacta diferentes classes sociais”[16], “Saúde mental e COVID-19: as dimensões psicossociais da pandemia”[17], “O brincar em tempos de pandemia”[18], “Luto e pandemia: adaptação de despedidas às restrições impostas pela COVID-19”[19].
Nunca é demais destacar que essas práticas discursivas da ciência e da divulgação científica se constroem na contracorrente, funcionam como uma reafirmação de um posicionamento ideológico sustentado na responsabilidade e no compromisso social. Fazer uso constante do termo pandemia pode operar como forma de alerta para a gravidade desta crise, que já não é apenas sanitária, mas política, social, cultural e econômica.
Notas
[1] Conforme definição do dicionário Aurélio.
[2] Declaração da OMS disponível em: Declaração da OMS disponível em: https://www.who.int/es/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19—11-march-2020
[3] R7: Coronavírus: qual a diferença entre pandemia, epidemia e infecção endêmica? Disponível em: https://noticias.r7.com/saude/coronavirus-qual-a-diferenca-entre-pandemia-epidemia-e-infeccao-endemica-11032020
[4] Matéria veiculada pela Agência FAPESP, intitulada “Epidemia de coronavírus exige da sociedade maior atenção ao idoso”, publicada em abril de 2020, na qual se nota o uso dos termos “pandemia” e “epidemia” sem destacar a diferenciação entre eles. Disponível em:https://agencia.fapesp.br/epidemia-de-coronavirus-exige-da-sociedade-maior-atencao-ao-idoso/32990/
[5] O uso do termo “gripezinha” ficou mundialmente conhecido pelos discursos do atual presidente do Brasil.
[6] R7: https://noticias.r7.com/brasil/bolsonaro-depois-da-facada-uma-gripezinha-nao-vai-me-derrubar-21032020
[7] R7: https://noticias.r7.com/brasil/na-tv-bolsonaro-critica-isolamento-e-diz-que-a-vida-deve-continuar-24032020
[8]R7: https://noticias.r7.com/saude/covid-19-nao-e-pandemia-mas-sindemia-o-que-essa-perspectiva-cientifica-muda-no-tratamento-10102020
[9] R7: https://noticias.r7.com/sao-paulo/mortalidade-por-covid-19-e-maior-entre-populacao-negra-em-sp-28082020
[10]Disponível em FAPESP: https://fapesp.br/14260/ciencia-e-inovacao-contra-a-pandemia
[11] Disponível em R7: https://noticias.r7.com/saude/saldo-da-pandemia-incluira-tambem-obesidade-depressao-e-alcoolismo-16052020
[12] Disponível em R7: https://noticias.r7.com/educacao/pandemia-42-dos-alunos-podem-abandonar-faculdades-privadas-11062020
[13] Disponível em InformaSUS: https://informasus.ufscar.br/desigualdade-de-genero-e-a-violencia-contra-a-mulher-no-contexto-da-pandemia-do-coronavirus/
[14] Disponível em InformaSUS: https://informasus.ufscar.br/lideranca-terena-denuncia-situacao-da-comunidade-durante-a-pandemia-de-covid-19/
[15] Disponível em InformaSUS: https://informasus.ufscar.br/os-direitos-sociais-no-contexto-da-pandemia-sobre-o-auxilio-emergencial/
[16] Disponível em InformaSUS: https://informasus.ufscar.br/sociologia-do-trabalho-ajuda-a-compreender-como-pandemia-impacta-diferentes-classes-sociais/
[17] Disponível em InformaSUS: https://informasus.ufscar.br/saude-mental-e-covid-19-as-dimensoes-psicossociais-da-pandemia/
[18] Disponível em InformaSUS: https://informasus.ufscar.br/o-brincar-em-tempos-de-pandemia/
[19] Disponível em InformaSUS: https://informasus.ufscar.br/luto-e-pandemia-adaptacao-de-despedidas-as-restricoes-impostas-pela-covid-19/
Créditos da imagem: Anna Shvets no Pexels
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