Desde o início da pandemia várias categorias profissionais foram apresentadas como essenciais para garantir minimamente o caminhar da vida. Nesse sentido, uma delas ganha destaque pela representação e necessidade social: os profissionais da área de Segurança (pública e privada)
Estamos falando, portanto, de profissionais que atuam em serviços essenciais públicos e privados e que trabalham com contatos físicos intensos e que, muitas vezes, não são previstos. O que se evidenciou do cotidiano de trabalho destas pessoas com a pandemia? Quais são os principais desafios desses profissionais no atual contexto?
Todo cidadão brasileiro tem direito à segurança pública, garantido pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 144. Ela é dever do Estado, e representa, simultaneamente, um direito e uma responsabilidade de todos, sendo exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e dos patrimônios. Com a evolução da sociedade essa compreensão ampliou-se e, hoje, já se discute a Segurança Global, fundamentada no direito natural à vida, à saúde, à propriedade e à integridade das pessoas e do patrimônio.
Olhando internamente para a organização do trabalho e para os objetivos deste setor, identificamos que as tarefas realizadas por estes profissionais trazem riscos que, além de inerentes, por vezes se colocam como naturalizados e, nos dias de hoje, somam-se aos riscos da pandemia de COVID-19. Minayo e Adorno (2013) discutem o quão complexos são os meandros que circundam as vidas pessoal e profissional desses trabalhadores, destacando riscos comuns e conhecidos, tais como a ocorrência de graves acidentes, lesões, traumas, sofrimento/adoecimento mental e até mesmo a morte.
A quais tipos de riscos esses profissionais estão expostos?
- Riscos de contaminação: de acordo com o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) de Salvador, os trabalhadores responsáveis pela segurança pública compõem o grupo de médio risco. Em tais atividades se incluem “[…] aquelas que requerem contato frequente e/ou estreito com (ou seja, a menos de um 1,8 m) pessoas que podem estar infectadas com SARS-CoV-2” (DIRETORIA GERAL DE VIGILÂNCIA À SAÚDE, 2020, p. 2) . Entretanto, quando esses trabalhadores desenvolvem a escolta de presos em unidades de saúde, por exemplo, ou quando realizam o transporte de presos contaminados ou sob suspeita de contaminação pelo novo coronavírus em veículos fechados, eles passam a ser profissionais classificados como do grupo de alto risco.
- Periculosidade: é possível reconhecer que, em vários momentos da jornada de trabalho, estes profissionais lidam com a imprevisibilidade das demandas (MINAYO; ADORNO, 2013) e com o uso de estratégias e instrumentos de trabalho que envolvem alta periculosidade para suas vidas e para a vida de outros indivíduos em nome dos processos de segurança que devem ser realizados.
O que mudou com a pandemia?
Destaca-se, no geral, que agentes da Segurança são responsáveis pelo cuidado para que medidas de distanciamento físico sejam adequadamente cumpridas pelos cidadãos, o que traz novas tensões ao papel desempenhado por estes profissionais. Nesse cenário, serviços de Segurança privada passaram a ser considerados serviço essencial pela Lei 13.979/2020, refletindo diretamente no suporte à segurança de hospitais, clínicas e outros estabelecimentos comerciais também considerados serviços essenciais.
Assim, a presença de álcool em gel nos postos de trabalho e o uso adequado de máscaras são adequações à nova realidade. De acordo com uma empresa do ramo que conta com 55 mil funcionários no Brasil, o setor passará por mudanças profundas pós-COVID-19 – mudanças estas que se assemelham às transformações do 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos para o setor da aviação, por exemplo. Prevê-se que a atividade passe a utilizar muito mais meios tecnológicos e menos recursos humanos em um futuro próximo.
Somado a isso, o impacto econômico já evidenciado pela crise global causada pela pandemia eleva o risco de violência e aumenta a exposição ao risco para indivíduos ligados ao sistema prisional brasileiro, com ambientes insalubres que escancaram a necessidade imediata de medidas sanitárias para todos, incluindo-se aí agentes de segurança e profissionais que trabalham nesse sistema.
Diante das tarefas realizadas e instrumentos, Fraga (2006) aponta as rotinas e incertezas deste trabalho, evidenciando possibilidades e limitações para evitar o contágio pelo novo coronavírus. Se, no passado, a saúde desse trabalhador já estava exposta a tantas intempéries, hoje a vulnerabilidade se faz ainda mais cruel.
Conforme dados apresentados recentemente à mídia brasileira, São Paulo tem cerca de 3.000 policiais afastados por suspeita de contaminação pela COVID-19. Há, portanto, uma preocupação real com a baixa de profissionais disponíveis na oferta da Segurança pública à população, pois a corporação conta com cerca de 110 mil policiais mas conta, atualmente, com muitos afastamentos (casos suspeitos de contaminação e profissionais que pertencem ao grupo de risco), além dos óbitos.
Destaca-se ainda que nem sempre as medidas de segurança são usadas, e vários fatores podem interferir para além da própria organização do trabalho. Já há grande número de infectados dentre os profissionais da segurança, e em contato informal entende-se que, apesar das orientações, nem sempre há material protetivo suficiente que permita seguir os protocolos recomendados. Existe, ainda, distintos graus de escolaridade, o que interfere diretamente na compreensão quanto ao uso das medidas de segurança, incluindo-se, também, a influência de posicionamentos políticos distintos.
O que está sendo feito por esses trabalhadores?
As organizações públicas e privadas têm desenvolvido propostas que visam a minimização dos riscos de contágio, o que envolve mudança na organização das rotinas de trabalho, uso de equipamentos de proteção individual (EPIs), medidas de segurança, elaboração de materiais de orientação e alterações das tarefas previstas.
Frente às mudanças atuais e futuras, destacamos algumas orientações que podem ser acessadas na íntegra, com o objetivo de instrumentalizar estes profissionais, minimizando alguns riscos. Confira a seguir:
- o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), por meio da Rede de Educação a Distância em Segurança Pública (EaD-SENASP), confeccionou um manual de boas práticas em que são apresentados procedimentos a serem adotados antes, durante e após as jornadas dos operadores de segurança, mitigando o risco de contágio pela COVID-19 para si mesmos e para os seus familiares;
- outra iniciativa de orientação foi adotada pelo Ceres de Salvador em sua Nota Técnica 009/2020, com recomendações básicas para auxiliar profissionais da Segurança no cotidiano de sua atuação;
- no site da Polícia Militar do Estado de São Paulo destaca-se o acesso a um conjunto de materiais com orientações para prevenção do policial militar, da população em geral e para veteranos. Estão disponíveis vídeos informativos, cartilhas, cartazes, áudios para serem utilizados em sistemas de rádio e vários outros conteúdos envolvendo o trabalho de policiais para minimizar os riscos de transmissão na população. Para acessar os materiais, clique aqui.
Outra medida a ser destacada no estado de São Paulo são os testes para detecção de infecção e imunidade para COVID-19, realizados para profissionais de Segurança pública com o objetivo de garantir atenção à saúde desses trabalhadores e evitar piores desfechos do quadro – até então, apenas os casos mais graves eram verificados.
Também pode ser reforçada a possibilidade de registros de queixas por meio da Delegacia Eletrônica para evitar a exposição da população durante o isolamento, como também o da própria equipe de segurança pública.
Ocorrências que podem ser registradas on-line:
- roubo ou furto de veículos;
- furto de documentos/celular/placa de Veículo/bicicleta;
- perda de documentos/celular/placa de veículo;
- roubo de documentos, celulares e/ou objetos;
- injúria, calúnia ou difamação;
- acidente de trânsito sem vítimas;
- desaparecimento de pessoas;
- encontro de pessoas;
- furto de fios/cabos em vias públicas (somente para empresas concessionárias);
- violência doméstica;
- outras ocorrências;
- ocorrências da Delegacia Eletrônica de Proteção Animal (DEPA).
Ocorrências que não podem ser feitas on-line (nesses casos, você deve procurar uma delegacia e registrar a ocorrência pessoalmente):
- estupro;
- homicídio;
- latrocínio (roubo seguido de morte).
Os desafios que o cenário aponta
O Ten. Cel. Marco Aurélio Gritti nos concedeu uma entrevista. Veterano na Polícia Militar do Estado de São Paulo, atualmente ele atua na área de segurança patrimonial e privada nos ramos industrial e agrícola. Gritti destaca que, neste momento, dentre os principais desafios no trabalho cotidiano, o foco deve ser a prevenção de conflitos familiares, que podem resultar em violência doméstica e homicídio – envolvendo, inclusive, idosos e crianças. Na segurança patrimonial ele destaca a preocupação atual com as consequências de alguns movimentos sociais que vêm ocorrendo em todo o mundo.
Essa preocupação se traduz na divulgação dos últimos dados apresentados pelo secretário geral do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Antonio Costa. Segundo ele, no começo de março foram realizadas três mil denúncias. Em abril, esse índice passou para oito mil e, em maio, subiu para quase 17 mil. Isso se dá devido ao isolamento social, ao convívio maior de idosos que estão em casa: são pessoas vulneráveis e, por isso, o aumento do número de denúncias.
Gritti comenta, ainda, que além das novas demandas é necessária uma reorganização dos processos de trabalho, de modo a garantir a proteção destes profissionais, reforçando a cautela com a higiene e a limpeza, uma vez que o contato com pessoas é fator inerente à área de Segurança ao prestar orientações, revistar suspeitos, vistoriar veículos e outras tantas ações. Para tanto, Gritti acredita que seja fundamental a adoção de medidas e de protocolos de cuidado com saúde e higiene, envolvendo não somente a proteção pessoal, mas também a de colegas de trabalho e familiares.
É preciso destacar que, neste cenário, o medo de adoecer, infectar a família e ter contato diário com mortos por COVID-19 aumenta o sofrimento mental dos profissionais de Segurança. Tais questões foram debatidas no Fórum Brasileiro de Segurança Pública realizado pelo SIFUSPESP. Assim, reconhecer e falar de grandes tabus como os índices de suicídio entre esses profissionais parece ser urgente. Para mostrar a relevância deste aspecto que também foi citado por Gritti, é importante considerar que, em 2019, enquanto as taxas de suicídio para cada 100 mil habitantes em São Paulo foram de 5,8, entre os policiais militares esse número chegou a 21,7; entre policiais civis, a taxa foi de 30,3.
Finalizamos esta reflexão com as recomendações do Instituto Sou da Paz, uma organização da sociedade civil de interesse público que trabalha pela prevenção da violência no Brasil e busca influenciar políticas públicas na área da Segurança. Foram elaboradas dez medidas fundamentais para a segurança pública – que vão desde o uso de EPIs até tecnologias que protejam os grupos e garantam diagnóstico e assistência, além de políticas públicas para lidar com os novos desafios impostos pelo contexto da pandemia.
Referências
- DIRETORIA GERAL DE VIGILÂNCIA À SAÚDE. Centro de Referência em Saúde do Trabalhador de Salvador – Cerest Salvador. Complexo Municipal de Saúde Dr. Clementino Fraga. Nota Técnica Nº 009/2020: RECOMENDAÇÕES PARA TRABALHADORES DA SEGURANÇA PÚBLICA. A COVID-19 e as repercussões no mundo do trabalho. p. 1-5. Disponível em: http://renastonline.ensp.fiocruz.br/sites/default/files/arquivos/recursos/nota_tecnica_no_009.2020_-_seguranca_publica_final-editado.pdf#overlay-context=recursos/nota-tecnica-recomendacoes-trabalhadores-seguranca-publica-covid-19-repercussoes-mundo. Acesso em: 07 jul. 2020.
- BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 05 out. 1988. Disponível em: https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_05.10.1988/ind.asp. Acesso em: 07 jul. 2020.
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- MINAYO, M. C. de S.; ADORNO, S. Risco e (in)segurança na missão policial. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, mar. 2013. Disponível https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232013000300002. Acesso em: 23 jun. 2020.
- GLOBALSEG. Conheça as mudanças no setor da segurança privada em meio à pandemia do Covid-19. Globalseg, 23 abr. 2020. Disponível em: https://www.globalsegmg.com.br/mudancas-na-seguranca-privada-pandemia-covid-19/. Acesso em: 07 jul. 2020.
- DEL CERRO, A. T. [Agência EFE de Notícias]. Pandemia será como 11/9 para segurança privada, diz diretor da Prosegur. Uol Economia, 07 maio 2020. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/efe/2020/05/07/pandemia-sera-como-119-para-seguranca-privada-diz-diretor-da-prosegur.htm. Acesso em: 07 jul. 2020.
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- SERAFIM, F. Pandemia aumenta desafios ao cotidiano e à saúde mental dos trabalhadores da segurança pública. SIFUSPESP, 06 jun. 2020. Disponível em: https://www.sifuspesp.org.br/noticias/7672-pandemia-aumenta-desafios-ao-cotidiano-e-a-saude-mental-dos-trabalhadores-da-seguranca-publica#deny. Acesso em: 071 jul. 2020.
- GOVERNO DO BRASIL. Aumenta número de denúncias de violação aos direitos de idosos durante pandemia. Notícias > Assistência Social, 15 jun. 2020. Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/assistencia-social/2020/06/aumenta-numero-de-denuncias-de-violacao-aos-direitos-de-idosos-durante-pandemia. Acesso em: 07 jul. 2020.
- POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO. A prevenção é a melhor solução. Guia de prevenção sobre o Coronavírus. Comunicação Social PMESP, 2020. Disponível em: http://www.policiamilitar.sp.gov.br/noticias/noticia-interna/2020/3/2283/a-prevencao-e-a-melhor-solucao. Acesso em: 07 jul. 2020.
- INSTITUTO SOU DA PAZ. Especialistas elaboram 10 medidas para a segurança pública durante a pandemia da Covid-19. Notícias, 04 maio 2020. Disponível em: http://soudapaz.org/noticias/especialistas-elaboram-10-medidas-para-a-seguranca-publica-durante-a-pandemia-da-covid-19/. Acesso em: 07 jul. 2020.
Autoria de
Débora Couto Carrijo
Juliana Morais Menegussi
Revisão de Conteúdo por
Cristiane Shinohara Moriguchi de Castro
Eduardo Pinto e Silva
Fernanda Maria de Miranda
Juliano Ferreira Arcuri
Vera Regina Lorenz
Créditos da imagem: Marcelo Seabra no Fotos Públicas
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