O assédio moral no trabalho é um fenômeno complexo relacionado às configurações organizacionais, sociais, culturais e políticas do sistema produtivo. Trata-se de um evento nocivo que impacta a saúde individual e coletiva dos trabalhadores no ambiente de trabalho, podendo gerar prejuízos de diferentes naturezas, como a queda da produtividade e suicídio.

Ambientes em que a cultura e o clima organizacional são muito permissivos podem tornar os relacionamentos entre os trabalhadores desrespeitosos e estimular a conivência com o abuso intencional. Um ambiente de trabalho com competição acirrada, culpabilização individualizada, metas descabidas, ritmo acelerado, inflexibilidade nas decisões, hipervalorização do aspecto econômico em detrimento do aspecto humano, social e cultural predispõem a diferentes manifestações de violência interpessoal, entre elas o assédio moral no trabalho (AMT).

O que é AMT?

O AMT é “uma conduta abusiva, intencional, frequente e repetida, que ocorre no meio ambiente laboral, cuja causalidade se relaciona com as formas de organizar o trabalho e a cultura organizacional, que visa humilhar e desqualificar um indivíduo ou um grupo, degradando as suas condições de trabalho, atingindo a sua dignidade e colocando em risco a sua integridade pessoal e profissional”.

O AMT não é um problema recente. Ele persiste ao longo da história das relações de trabalho, sempre marcadas por um grande desequilíbrio de poder e por diversas formas de discriminação. É multilateral, frequente, contínuo e objetiva submeter, humilhar e, diversas vezes, expulsar o trabalhador que é diferente (discriminações) ou não se submete a determinadas relações de poder. Frequentemente o desejo implícito é constranger ou até “destruir” a vítima.

Como reconhecer a ocorrência de assédio no trabalho?

É comum que o AMT comece de forma sutil, confundindo-se com uma brincadeira de mau gosto, conflitos latentes ou eventuais, o que dificulta seu reconhecimento como um problema sério. Para que o assédio moral possa ser reconhecido é preciso estar atento e saber as formas pelas quais ele se apresenta.

Uma das características principais do AMT é a repetição, pois as agressões podem não ser diretas, mas são constantes e frequentes o suficiente para provocar fragilidade, inferioridade e sofrimento. Caracteriza-se pela degradação das condições de trabalho, prevalecendo atitudes hostis e condutas negativas no relacionamento entre chefias e subordinados ou entre os colegas de trabalho. Os elementos que constituem as situações de AMT são:

  • Intencionalidade: o assediador visa forçar o outro a desistir do emprego, mudar de setor, sujeitar-se a situações humilhantes, entre outras intenções;
  • Temporalidade e repetitividade: sequência de eventos que acontecem várias vezes durante um determinado período de tempo e que apresenta múltiplas estratégias para conseguir o mesmo fim, como um processo;
  • Degradação das condições de trabalho: expõe a riscos, interfere no ritmo de trabalho e na produtividade, causa problemas à saúde, ao bem-estar e impacta no desempenho profissional dos trabalhadores;
  • Direcionalidade: pode ser horizontal (um colega é assediado por outro colega), descendente (um subordinado é assediado pelo chefe), ascendente (um superior é assediado pelo subordinado) e (misto quando o assédio provém de diferentes direções).

Já no assédio sexual, ocorre um constrangimento para obter favorecimento sexual, aproveitando-se o agente da sua condição de superior hierárquico na organização ou de outras formas de domínio, até mesmo entre colegas. O assédio sexual não deve ser confundido com o moral, embora os dois, às vezes, estejam intimamente relacionados e possuam a mesma matriz: atos de violência explícitos ou sutis.

A continuidade dos ataques torna o assediado acuado, com sentimentos de desvalorização, o que contribui para seu isolamento social e o fortalecimento da espiral de consequências negativas, pois quanto mais isolado, mais vulnerável estará aos ataques dos assediadores. Em muitas situações, o assediado não compartilha com seus familiares, colegas de trabalho e amigos o que está acontecendo, o que dificulta a visibilidade da situação.

A argumentação, baseada em vários exemplos de pesquisas de Barreto sobre o assédio moral no Brasil, assim como em considerações de seus aspectos jurídicos e políticos, aponta que o fenômeno, embora histórico, se intensifica na atualidade, uma vez que “o modo como o trabalho está organizado e é gerido favorece relações violentas”; assim como a proliferação de “regras incertas, mutáveis, promessas não cumpridas, reconhecimentos negados, punições arbitrárias, exigências de submissão de uns e arrogância de outros”.

Essa situação tão complexa permeia as realidades do trabalho moderno e encontramos até no cinema exemplos claros de AMT. Filmes como O Diabo Veste Prada (2006), O Grande Chefe (2006), Harry Potter e a Ordem da Fênix (2007), Terra Fria (2005) e tantos outros, retratam ambientes nocivos e propícios para a ocorrência de AMT, assim como seus personagens, e podem nos servir de exemplo.

E o Diabo veste Prada? O que devemos observar de comportamentos do assediador?

Comportamentos que visam a degradação proposital das condições de trabalho:

  • Retirar a autonomia do assediado;
  • Não transmitir informações úteis para a realização de tarefas;
  • Contestar sistematicamente as decisões do assediado;
  • Criticar seu trabalho de forma injusta ou demasiada;
  • Privar o assediado de acessar seus instrumentos de trabalho: telefone, fax, computador etc.;
  • Retirar o trabalho que normalmente compete ao assediado e dar permanentemente novas tarefas;
  • Atribuir proposital e sistematicamente tarefas inferiores ou superiores às suas competências;
  • Pressionar o assediado para que não exija seus direitos;
  • Impedir ou dificultar a promoção na carreira do assediado;
  • Causar danos materiais em seu posto de trabalho;
  • Desconsiderar/desdenhar recomendações médicas;
  • Induzir o assediado ao erro.

 Comportamentos que visam o isolamento e recusa de comunicação:

  • Interromper o assediado com frequência;
  • Não conversar com o assediado, mesmo em situações necessárias;
  • Comunicar-se unicamente por escrito;
  • Recusar contato, inclusive visual;
  • Isolar o assediado do restante do grupo;
  • Ignorar a presença do assediado e dirigir-se apenas aos outros;
  • Proibir que colegas falem com o assediado e vice-versa;
  • Recusa da direção ou chefia em falar sobre o que está ocorrendo.

Comportamentos que atentam contra a dignidade da pessoa:

  • Fazer insinuações desdenhosas;
  • Fazer gestos de desprezo para o assediado (suspiros, olhares, levantar de ombros, risos, conversinhas etc.);
  • Desacreditar o assediado diante dos colegas, superiores ou subordinados;
  • Espalhar rumores a respeito do assediado;
  • Atribuir/desdenhar problemas de ordem psicológica;
  • Criticar ou brincar sobre deficiências ou características físicas;
  • Criticar a vida particular do assediado;
  • Zombar de suas origens, nacionalidade, crenças religiosas ou convicções políticas;
  • Atribuir tarefas humilhantes.

Comportamentos de violência verbal, física ou sexual:

  • Ameaçar o assediado de violência física;
  • Agredir fisicamente;
  • Comunicar aos gritos;
  • Invadir sua intimidade, por meio da escuta de ligações telefônicas, leitura de correspondências, e-mails, comunicações internas etc.;
  • Seguir e espionar o assediado;
  • Danificar o automóvel do assediado;
  • Assediar ou agredir sexualmente o assediado por meio de gestos ou propostas;
  • Desconsiderar os problemas de saúde.

 O que fazer para interromper o AMT?

Primeiro, é preciso ter em mente que o assédio moral é em si um problema organizacional, porque ocorre no ambiente de trabalho, entre pessoas (assediadas e assediadores) que são parte da estrutura organizacional. O AMT decorre de papéis organizacionais e encontra espaço em questões ou aspirações organizacionais e institucionais, o que torna a organização (fábrica, escola, hospital etc.) corresponsável pelos atos culposos ou dolosos que ocorrem em seu interior. Assim, a violência ocorre no ambiente de trabalho a partir de relações de poder consideradas abusivas, incluindo ameaças e intimidações. Algumas situações na organização facilitam o surgimento de comportamentos violentos, abusivos e humilhantes. Dessa forma, sua interrupção absoluta precisará de apoio institucional! E como fazer isso nas organizações? É possível:

  • Formular uma política que defina assédio, formas de prevenção, de assistência ao assediado e de punição ao assediador;
  • Elaborar um fluxo para recebimento da queixa e de encaminhamento das questões administrativas, observando o sigilo e confidencialidade das informações e anonimato dos envolvidos;
  • Formular o código de ética da organização, abordando o que é permitido e o que não é aceito;
  • Elaborar estratégias organizacionais para acolher as queixas, por meio da área de gestão de pessoas, para que o trabalhador assediado possa se manifestar, denunciando a agressão;
  • Criar espaços coletivos de discussão, que podem ser dentro da organização, onde os envolvidos possam expor os problemas e expectativas, facilitando a comunicação;
  • Apurar as situações de assédio e aplicar penalidades previamente estabelecidas na política.

Lembrando que a participação dos trabalhadores e seus representantes com a direção da organização nas atividades de análise, planejamento, ações e acompanhamento nas situações de assédio moral e/ou sexual no trabalho é fundamental para o êxito de qualquer programa deste tipo.

Além disso, os trabalhadores podem:

  • Identificar e registrar o problema e os comportamentos que eventualmente podem caracterizar o assédio;
  • Registrar: anotar tudo o que acontece, realizar um registro diário e detalhado do dia a dia do trabalho;
  • Coletar provas: coletar e guardar provas das situações como, por exemplo, bilhetes do agressor, documentos que demonstrem tarefas impossíveis de serem cumpridas ou inúteis, e-mail com informações importantes;
  • Buscar testemunhas: procurar conversar com o agressor sempre na presença de testemunhas, como um colega de trabalho de confiança ou representante do sindicato;
  • Formar uma rede de resistência: reforçar a solidariedade no ambiente de trabalho, na tentativa de criar uma rede de enfrentamento às condutas do agressor e dar visibilidade à situação;
  • Buscar orientações na organização: procurar a área de gestão de pessoas da organização para relatar os fatos e exigir providências a serem tomadas;
  • Elaborar documentos com relato do ocorrido: exigir explicações do agressor por escrito, enviar informação à gestão de pessoas, guardar o comprovante de envio e possível resposta;
  • Buscar orientação no sindicato: procurar o sindicato da categoria que pode contribuir nestas situações, na tentativa de buscar caminhos para a resolução do conflito;
  • Buscar apoio profissional: contar com apoio de profissionais da saúde, como médicos, psicólogos e psiquiatras; ou do direito, por meio de orientação jurídica de como proceder nesta situação;
  • Buscar outros apoios: amigos e familiares.

As práticas de assédio, por vezes, podem ser nebulosas. Muitas pessoas podem se sentir incomodadas com determinadas situações, porém não entendem ou não reconhecem que podem estar sendo vítimas de assédio. Nesse sentido, a informação é um passo importantíssimo para a tomada de consciência das circunstâncias.

É certo que o AMT é um elemento cada vez mais frequente no funcionamento de organizações públicas e privadas, sendo caracterizado pela alta recorrência de violências (explícitas e implícitas) no ambiente laboral. Além disso, é importante ressaltar que os agentes participativos de um assédio não são somente os assediadores, mas também todos os indivíduos que se calam durante o processo.

Embora existam movimentos que busquem individualizar o assédio, é importante ressaltar que ele é de responsabilidade singular, coletiva, da gestão do trabalho e social. Nesse sentido, é necessário pensar sobre as formas de punição e reparação de acordo com a realidade de cada caso; analisar as relações e a comunicação interna; avaliar constantemente se as práticas de gestão reforçam ou freiam as práticas de assédio e, por fim, refletir, como sociedade, sobre o modo como vivemos e nos portamos frente às situações cotidianas.

O assédio funciona na lógica do medo. O medo rompe com o sentido do trabalho e as mobilizações saudáveis de criatividade dos colaboradores, assim como desencadeia uma série de prejuízos às organizações. Empatia, responsabilização, reparação e ética viva: movimentos necessários para uma organização de trabalho justa e inclusiva (não somente no discurso).

É importante que o assédio seja reconhecido imediatamente pelos trabalhadores, para que medidas de intervenção sejam aplicadas, a fim de evitar que situações se tornem mais persistentes e violentas. Vamos discutir esses conceitos!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HELOANI, R.; BARRETO, M. Assédio moral: gestão por humilhação. Curitiba: Editora Juruá, 2018.

OLIVEIRA, R.T. de et al. Violência, discriminação e assédio no trabalho. Florianópolis, SC: Lagoa, 2020. 32 p. Disponível em: https://neppot.paginas.ufsc.br/files/2021/03/cartilha-viol%C3%AAncia-e-ass%C3%A9dio-web.pdf. Acesso em 18/09/2021

HIRIGOYEN, M. F. Assédio moral: a violência perversa no cotidiano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

FREITAS, M. E.; HELOANI, R.; BARRETO, M. Assédio moral no trabalho. São Paulo: Cengage Learning, 2008, 124p.

BARRETO. M.S. Uma jornada de humilhações. São Paulo, 2000. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 

BARRETO, M.S. Assédio Moral: a violência sutil. Análise epidemiológica e psicossocial no trabalho. São Paulo, 2005. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 

Autores

Ana Carolina Reis

Fernanda Maria de Miranda

Eduardo Pinto e Silva

Vera Regina Lorenz

Revisores

Cristiane Shinohara Moriguchi de Castro

Vivian Aline Mininel

Autor

  • Vera Regina Lorenz

    Enfermeira e advogada, Mestre em Enfermagem e Doutora em Ciências da Saúde pela Unicamp, Pós-doutorado pela USP. Temas de interesse: saúde coletiva, saúde do trabalhador, ambiente e inclusão CV: http://lattes.cnpq.br/9930086444530551

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