O Grupo Temático sobre Saúde Indígena do InformaSUS, em parceria com o PET Indígena Ações em Saúde UFSCar, apresenta uma nova matéria para a série de entrevistas “De Parente pra Parente”. Nela, estudantes indígenas entrevistam indígenas em suas vivências relacionadas à saúde.
Nessa atividade, conversamos com a Técnica de Enfermagem Laudecir da Conceição, pertencente ao povo Baré, que trabalha diretamente com a saúde indígena nas comunidades ribeirinhas acima de São Gabriel da Cachoeira, município no interior do estado do Amazonas. A entrevista foi realizada por Dênis Delgado, indígena do povo Baré e estudante de Enfermagem na Universidade Federal de São Carlos.
O povo Baré está concentrado nas mediações do Rio Xié e do Alto Rio Negro, para onde muitos indígenas Baré historicamente foram migrando devido ao contato com os não indígenas, cuja história foi marcada por violência e exploração do trabalho. A língua dessa comunidade faz parte da família Aruak, e hoje falam uma língua difundida pelas carmelitas no período colonial, o Nheengatú.
Atualmente, vivem em cerca de 140 comunidades no decorrer dos rios Negro e Xié, onde residem aproximadamente 3200 pessoas. Há também muitos indígenas do povo Baré que vivem na Zona Urbana de São Gabriel da Cachoeira. (ISA, 2021)
Na Região de São Gabriel da Cachoeira, há uma grande diversidade de povos indígenas e não-indígenas. Conhecido como o município mais indígena do Brasil, existem cerca de 30 etnias com suas línguas e culturas únicas, com uma população estimada de 46.303 em 2020 (ISA, 2021).
Na mesma cidade, além do português, outras quatro línguas são oficiais: Tukano, Nheengatú, Baniwa e Yanomami. Localiza-se às margens do Rio Negro, estando a 862.56 km da capital do estado, Manaus. Pela rota do rio, a forma mais habitual de deslocamento entre Manaus e São Gabriel da Cachoeira são de dois a quatro dias de embarcação, já que a distância de condução é cerca de 1,699 km em meio à Floresta Amazônica. A imagem abaixo traz o mapa do município.
O trabalho da saúde indígena no município é realizado pelo Sistema Único de Saúde e por meio de seu Subsistema de Saúde Indígena do SUS, o SASISU, na busca de dar atenção diferenciada a toda a população. Todavia, há limitações de recursos para oferecer assistência qualificada a todos os indígenas, não indígenas e ainda comunidades ribeirinhas, o que ficou evidenciado durante todo o período da pandemia de COVID-19. Vale ser lembrado que o município atende ainda outros da região, por ser o único que possui, apesar das limitações, recursos para oferecer subsídio às essas comunidades.
Segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (APIB) atualizados até o dia 11 de setembro de 2021, foram 58.922 indígenas que tiveram o diagnóstico de COVID-19 desde o início da pandemia no Brasil, sendo que 1200 morreram. Destaca-se, também, a ocorrência de 254 óbitos no estado do Amazonas, sendo o município de São Gabriel da Cachoeira o terceiro em mortes pela pandemia (APIB, 2021).
No contexto atual de saúde, não é de hoje que São Gabriel da Cachoeira vive com problemas pela precariedade da rede de saúde, que já contam através dos anos passados por altas taxas de doenças infecciosas, como dengue e malária, entre outros. Porém, com o viés ainda maior destacado pela pandemia de COVID-19, ficou evidente a falta de recursos na rede de saúde. A população e os profissionais de saúde, entretanto, tentam amenizar a problemática organizando uma força tarefa para conter o avanço do vírus e criando estratégias próprias para esse enfrentamento.
Nossa entrevistada conta um pouco de suas vivências em sua atuação na saúde indígena e fala um pouco de como é trabalhar nesse contexto, ressaltando os aprendizados durante todo o processo.
Dênis: Olá Laudecir, boa tarde. Você poderia se apresentar e falar um pouco do seu trabalho?
Laudecir: Boa tarde, Denis! Eu me chamo Laudecir Maria da Conceição, da etnia Baré. Trabalho no DSEI[1] há 14 anos, é a gente oferece uma saúde diferenciada, né? Quanto à nossa organização de trabalho em área, fazemos um planejamento de entrada, onde somos orientados para fazer vários programas, tipo, saúde do idoso, saúde da criança e do adolescente, saúde da mulher, saúde mental, imunizações, serviços odontológicos, e outros. Então eu trabalho como técnica de enfermagem. Mas assim, às vezes no DSEI, tem entradas que entram só técnicos, onde a gente faz o papel do enfermeiro, do médico, e trabalhar na saúde indígena é tudo. É bem diferenciado mesmo né!
Dênis: E o que você quer dizer quando diz que é diferenciado?
Laudecir: Também trabalhamos com urgência e emergência. Trabalhar diretamente com indígenas é um privilégio, pois aprendemos com eles, seus costumes, suas crenças e seus costumes alimentares, entre outros. Nós trabalhamos 24 horas direto com eles, dando a nossa atenção voltada somente a eles. Outra diferença de trabalhar com eles em área é bem diferente sim, pois nós levamos e buscamos pessoas doentes, não precisa enfrentar filas para atendimento. Nós levamos tudo isso na porta de suas casas, sem contar que eles são bem receptivos com os profissionais.
Dênis: E tem assim alguma história que você tenha vivido, que te marcou?
Laudecir: […]Muitas coisas que a gente faz na área foge um pouco do que a gente tem que fazer, que é o nosso dever né como técnicos, coisas que a gente faz, vai mais além do que a gente pode. Fizemos de tudo e uma experiência que eu tive, desde quando eu comecei a trabalhar que me marcou muito, foi o meu primeiro resgate, foi uma criancinha recém-nascida. Teve várias paradas, e eu tive que reanimar ela para poder chegar até aqui em São Gabriel. Ela teve acho que mais de 4 paradas na minha mão e só eu de técnica e o barqueiro. Mas assim, eu consegui trazer ela viva até aqui na cidade, mas infelizmente no outro dia quando eu fui procurar saber informações dela, ela tinha ido a óbito. E aí foi uma coisa assim que me marcou muito. E eu acho que fez eu me apegar mais, sabe? E fazer eu gostar do meu trabalho.
Dênis: E como tem sido o trabalho na pandemia?
Laudecir: Quanto ao COVID, nós trabalhamos com eles via rádio, cartazes e muita orientação quanto aos cuidados. E até o momento eles estão mantendo, Graças a Deus, não teve muitos óbitos. Agradeço também por poder contribuir um pouco.
Dênis: O que você recomendaria para quem pensar em trabalhar na saúde indígena?
Laudecir: Em particular, recomendo às pessoas que pensam entrar na Saúde indígena, que entrem e contribuam sendo principalmente humanos com os clientes e respeito, porque são várias etnias, idiomas diferentes, sem contar que eles têm um grande respeito aos profissionais né, de área.
A gente aprende muita coisa na saúde indígena, muito mesmo… é uma experiência, assim, é muito boa para quem quer aprender mesmo. É uma oportunidade de trabalho, de tudo, onde tu vai fazer realmente o que tu gosta. É tudo de bom, trabalhar na Saúde Indígena é para quem quer realmente, né? Fazer parte dessa família que não é pequena, ela é grande. É tudo de bom mesmo.
[1] Distrito Sanitário Especial Indígena, vinculado ao SASISUS.
Autoria de
Dênis Delgado da Silva
Vanusa Vieira Gomes
Revisão por
Willian Fernandes Luna
Referências:
ISA. Instituto Socioambiental. Povo Baré. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Bar%C3%A9 Acesso em 10 de setembro de 2021.
APIB. Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Emergência Indígena. Disponível em: https://emergenciaindigena.apiboficial.org/dados_covid19/ Acesso em 11 de setembro de 2021.
Veja também:
- Categoria: Saúde Indígena
-
Série: a experiência do(a) estudante indígena da UFSCar com a pandemia de COVID-19