Novo normal

Por Júlio Antonio Bonatti Santos & Roberto Leiser Baronas

A expressão novo normal é formada pela junção do adjetivo “novo” mais o substantivo “normal”. No seu conjunto enquanto um conceito que busca abarcar as condições que garantam a nossa sobrevivência durante e pós-pandemia vem sendo empregada nos mais diferentes tipos de textos e nos mais diversos campos e plataformas[1].

Um primeiro olhar sobre esse termo nos leva a indagar sobre o significado imediato da expressão: dizer “novo” pressupõe a existência de um “antigo”, de um “velho”, daquilo que está mais distante temporalmente em relação a algum tipo de mudança gerada por determinada razão. A noção de “novo” aqui se aplica ao conceito de “normal”: modifica aquilo que se entendia por uma “normalidade” instalada. Porém, o que é “normal”? E, quais “tipos de normalidade” estão em jogo quando o assunto é a COVID-19?

Pode-se entender o “normal” como aquilo que é “natural”, o que é admitido como sendo comum e corrente, que geralmente fazemos no cotidiano e não nos damos conta, ou seja, o que se concebe como “ordinário”. Porém, “normal” também diz respeito a “normas”, a “regras”, a “códigos” que devem ser seguidos. Dizendo de outro modo, é “normal” tudo o que expressa fatos e acontecimentos que não se apresentam como “extraordinários”, com os quais estamos acostumados, bem como um conjunto de costumes que seguimos em nosso dia-a-dia, ou até mesmo os princípios que ordenam a vida familiar, o consumo, a sociedade, a religião, a cultura e a educação, para ficarmos com apenas alguns exemplos.

Uma reflexão sobre o novo normal da pandemia global provocada pelo SARS-CoV-2 nos permite discutir várias questões que afetam bastante o que entendíamos por normalidade no início do século XXI. Antes de ser aplicado para identificar as transformações do atual momento, o conceito de novo normal já possuía uma circulação importante no campo das Ciências Econômicas, tendo se originado para referir-se à Crise de 2008, como uma forma de conceber os novos papéis da iniciativa privada e do Estado frente aos desafios da economia de mercado, bem como identificar a insuficiência da livre regulação do sistema financeiro[2].

Quer tenha sido usado como jargão dos economistas ou adaptado agora aos discursos sobre a COVID-19 para definir os rumos de uma pandemia, a ideia de um novo normal parte de uma oposição fundamental, de uma disputa entre necessidades recentes (ou urgentes) e uma ordem dos fatos que se entende como ultrapassada ou insuficiente para resolver os problemas que se colocam à luz do dia. Temos, a partir da expressão novo normal, um claro debate entre diferentes indivíduos e instituições para determinar qual seria o verdadeiro sentido que o conceito abarca.

Nesse sentido, podemos enxergar não uma, mas diversas formas de “normalidade” que foram afetadas no atual cenário de pandemia: o espaço da família se viu limitado ao ambiente doméstico, da campanha fique em casa; o consumo foi restrito aos bens chamados “essenciais”, identificados nos produtos dos supermercados e das farmácias; a convivência social agora é marcada pelo distanciamento físico entre as pessoas; os espaços sagrados de templos e igrejas se viram fechados, com os fiéis tendo de se adaptar a cultos, reuniões e missas online; a movimentação cultural nos teatros, cinemas, bares etc. foi reduzida ao espaço das lives nas redes sociais e a educação, do ensino básico ao superior, caminha a passos largos à migração da sua dinâmica presencial para a modalidade a distância.

O que seria, pois, o novo normal de uma sociedade ameaçada pela COVID-19 é um conjunto de novas práticas que se chocam com hábitos instituídos, com os quais estávamos acostumados, tendo como núcleo a reconfiguração das formas de proximidade dos corpos: as pessoas não são mais vistas como cidadãos, estudantes, fiéis, clientes ou funcionários, mas como potenciais transmissores de um vírus. Dessa maneira, os códigos sociais da “nova normalidade” incidem sobre um corpo concebido como “organismo” e não como um objeto de desejo ou dotado de vontades que excedam o “essencial”: comprar alimentos, remédios e sobreviver.

Para a criação desse novo padrão de ser humano, identificado pelos limites do seu corpo, foram necessárias medidas governamentais rígidas. As decisões políticas para conter o avanço da pandemia em praticamente todos os países do mundo, embora as práticas adotadas não tenham sido exatamente as mesmas, tiveram como foco a diminuição das liberdades individuais, como a livre circulação, com determinação de sanções legais e multas para quem desrespeitasse as diretrizes dos especialistas em epidemiologia, principalmente as normas da OMS (Organização Mundial de Saúde), de impor o uso de máscaras e exigir a presença de géis de limpeza por todos os lugares públicos. Cabe aqui comentar que, de maneira geral, essas normas não foram cumpridas no Brasil, ou foram cumpridas muito pontualmente em alguns lugares, pois não houve a existência de uma política nacional de combate ao coronavírus: as estratégias de combate à pandemia ficaram a cargo de estados e municípios.

Desse modo, a crise gerada pela COVID-19 exigiu a revisão da ordem jurídica, inclusive rompendo garantias básicas como o direito de ir e vir: o nascimento do “novo” impunha o sacrifício do indivíduo em nome de uma ideia de coletividade. Por isso, a implementação de um novo normal não se restringe às atitudes governamentais, com medidas restritivas: é preciso também “falar” em uma “nova normalidade”, criá-la simbolicamente, produzir uma percepção de mudança, de aceitação dos planos necessários para se atingir um bem maior sintetizado na superação da pandemia.

Assim, com a quantidade excessiva de informações sobre a pandemia, com dados de sua evolução, número de mortos, de contaminados, tendências de curvas e variáveis estatísticas em geral, a população se vê incapaz de compreender os rumos dos acontecimentos. A rápida transformação dos fatos nos escapa, foge à nossa capacidade de entendimento: nos sentimos incapazes de entender a realidade, ou melhor, não temos meios de apreendê-la em sua velocidade – e o “novo” se apresenta como algo inevitável, inquestionável e que já está naturalizado.

Dessa limitação técnica da população para compilar tudo o que se diz sobre a pandemia e conseguir entender a aceleração dos fatos, o “novo” precisa de alguém, ou melhor, de um grupo específico de indivíduos na sociedade que estão autorizados a interpretar a crise epidemiológica e dizer os passos que devem ser seguidos. Esse grupo é composto por especialistas da saúde: eles estão autorizados a idealizar as diretrizes do durante e do pós-pandemia para a consolidação de uma “nova normalidade”.

Portanto, a aceitação – ou mesmo a imposição – de um novo normal se baseia na auto-suficiência do discurso científico, resultado de pesquisas, de estudos de experts em curvas e tendências virais, simbolizado nas autoridades médicas. Logo, declarações como “Não há previsão para a volta ao velho normal em qualquer tempo futuro”[3], feita no último 7 de julho pelo diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, apresentam-se como dotadas de um poder indiscutível.

Respaldado, então, por um “valor de verdade” identificado na ciência, o discurso dos especialistas em saúde não se restringe mais ao ambiente hospitalar ou do consultório: no novo normal, esses especialistas não dizem apenas como se deve prevenir ou curar doenças, mas como se deve viver em sociedade, prescrevendo regras de distanciamento social e uso de equipamentos diversos. E essa autoridade sanitária sobre a população vai muito além do controle da vida: há uma “nova normalidade” também da morte, com restrições dos rituais funerários ou mesmo proibição de velórios, tanto para se evitar aglomerações como por medo de o corpo morto continuar sendo um vetor do coronavírus.

Uma vez regulada pela lógica dos epidemiologistas, a sociedade do novo normal enfrenta ainda uma incerteza temporal: não há previsões sobre o fim do contexto de pandemia; embora em alguns lugares haja um controle do número de novos casos e óbitos, constatam-se “segundas ondas” e, em dezenas de países, as contaminações só aumentam – como é o caso do Brasil. Por isso, cabe perguntarmos: a ideia de “nova normalidade” é uma adaptação a uma situação perene de pandemia? É possível prever uma situação de pós-pandemia na qual esse novo normal se estabilizaria?

Essas dúvidas nos levam a questionar se a transformação dos aspectos materiais da vida, como as novas modalidades de trabalho, é algo que veio para ficar. Crescem as formas de teletrabalho e temos a impressão de que tudo pode ser realizado de forma remota por meio de aplicativos ou por ambientes cibernéticos, uma vez que se promove assim o distanciamento físico necessário à contenção do coronavírus. Por outro lado, intensifica-se a exploração de trabalhos em situações geralmente precárias, como dos entregadores de produtos diversos, e aqueles que devem trabalhar “presencialmente” mantêm-se expostos à contaminação.

Ademais, essa “nova normalidade” afeta principalmente a educação, com aulas online e aprendizado digital. O espaço da casa se confunde com a sala de aula e os professores são obrigados a lidar com ferramentas que não conheciam, muitas vezes desempenhando apenas o papel de mediadores de uma plataforma virtual. Entretanto, esse “normal” revela os desafios de uma sociedade desigual, em que grande parte dos estudantes, a exemplo da realidade brasileira, sequer conta com acesso à internet, aumentando assim o abismo entre a educação básica pública e a particular[4].

O novo normal da COVID-19 sintetiza inúmeras mutações em um mundo assolado por uma doença que se espalhou muito rapidamente e que a própria medicina não conhece em profundidade, a ponto de não se saber quando será produzida uma vacina ou qual seria o tratamento mais eficaz.

Em meio a essas incertezas, todavia, vemos que todas as transformações da “normalidade” a que chamamos de “nova” se adequam às velhas estruturas, nas quais o aumento do desemprego pela crise econômica força a redução de salários e a precarização das formas de trabalho, evidenciando que as camadas mais pobres da sociedade sofrem e continuarão sofrendo mais as consequências desta e das próximas pandemias.

 

Notas

[1] Atesta esta ampla circulação do novo normal em diferentes campos e textos, por exemplo, o artigo de Marcos Nakagawa, intitulado Precisamos de um novo normal pós pandemia?, publicado na Folha de S. Paulo em 25/06/2020. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/empreendedorsocial/2020/06/precisamos-de-um-novo-normal-pos-pandemia.shtml. Acessado em 4 de agosto de 2020.

[2] O texto que primeiro usou essa expressão de “novo normal” foi publicado na revista Bloomberg em maio de 2008, escrito pelos economistas Rich Miller e Matthew Benjamin, para se referir aos desafios da economia estadunidense diante da crise financeira. Pode ser consultado pelo seguinte sítio eletrônico: https://www.bloomberg.com/news/articles/2008-05-18/post-subprime-economy-means-subpar-growth-as-new-normal-in-u-s. Acessado em 3 de agosto de 2020.

[3] Confira: https://noticias.r7.com/internacional/nao-ha-previsao-para-um-retorno-ao-velho-normal-diz-oms-13072020. Acessado em 5 de agosto de 2020.

[4] Um exemplo dessa situação pode ser visto na exclusão digital de 700 mil estudantes em Minas Gerais, sem acesso à internet, logo, à educação. Confira: https://www.otempo.com.br/cidades/em-minas-gerais-700-mil-alunos-devem-ficar-sem-acessar-aulas-remotas-1.2326670. Acessado em 5 de agosto de 2020.

 

Crédito da imagem: Andréa Rêgo Barros/PCR em Fotos públicas

Veja também:

Projeto: Enciclopédia Discursiva da COVID -19

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Autor

  • Fernanda Castelano Rodrigues

    Dados da editora: professora do Departamento de Letras da UFSCar desde 2008. Mãe, feminista, defensora dos Direitos Humanos, tem mestrado (2003) e doutorado (2010) em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela Universidade de São Paulo. Tem também especialização em Políticas para a Promoção da Igualdade na América Latina pela FLACSO/CLACSO (2018) e pós-doutorado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Participou da coordenação dos Módulos de Língua Portuguesa do Programa Mais Médicos para o Brasil (2013-2014). Foi diretora do Instituto de Línguas da UFSCar (2016-2017). Pesquisa no campo das Políticas Linguísticas, com especial interesse pelos Direitos Linguísticos de comunidades marginalizadas.

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