Por Lauro José Siqueira Baldini e Iara Bastos Campos
Embora possa aparecer em conjunto com os termos pós-verdade e fake news, de utilização mais recente, o negacionismo tem uma origem histórica diferente e mais antiga. De fato, o termo negacionismo foi cunhado em 1987 pelo historiador francês Henry Rousso em seu livro Le syndrome de Vichy: de 1944 à nos jours[1], em que ele aborda as memórias da República de Vichy (1940-1944) – período em que a França esteve sob domínio nazista e teve um governo colaboracionista sob o comando do Marechal Philippe Pétain. Nessa obra, Rousso trata do modo como esses quatro anos se inscreveram de maneira contraditória na memória social francesa. Mais especificamente, o autor enfatiza a necessidade de distinguir a revisão histórica, isto é, o fato de que interpretações consolidadas de certos eventos históricos possam ser questionadas e repensadas segundo novos dados e reinterpretações do negacionismo, ou seja, a negação politicamente motivada de um fato histórico. Como exemplo, toma a negação do Holocausto na Segunda Guerra Mundial[2], que se assenta sobre a defesa de que não houve realmente intenção de extermínio, e/ou assinala que os meios para realização desse extermínio não existiam.
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Homavandi, Raheb, “Holocaust Is a Big Lie” (2016), Reuters
Por extensão, o termo passou a ser utilizado para designar a negação de fatos históricos bastante conhecidos dos historiadores e com farta comprovação por evidências, documentação e testemunhos. São exemplos desse uso do termo o negacionismo do Genocídio Armênio, do Massacre de Katyn, do Massacre de Ruanda, do Genocídio Indígena na Califórnia, da Grande Fome na Ucrânia, da tortura e assassinato de opositores políticos na Ditadura Civil-Militar brasileira, entre outros.
Em 2007, a Assembleia Geral da ONU aprovou uma resolução condenando a negação do Holocausto. O objetivo da intervenção penal visando criminalizar o ato de negar, distorcer ou banalizar foi combater o falseamento dos fatos históricos que resultaram no desrespeito às vítimas e em interpretações históricas nitidamente racistas, como a ideia de um “complô judeu”. Mesmo assim, no entanto, ainda há grupos que se consideram perseguidos e impedidos de terem sua “liberdade de expressão”, ou seja, limitados de propagar discursos racistas, xenófobos e antissemitas.
De maneira geral, a abordagem negacionista opera simulando um discurso falsamente hipercrítico, em que uma metodologia tendenciosa atua selecionando, ocultando e destruindo informações que corroboram a existência de um fato histórico. Há, ainda, a criação de informações falsas ou a apropriação indevida de dados sem relação que são exibidos como se estivessem em relação causal. Em termos de linguagem, podemos dizer que opera aí um simulacro de exposição e argumentação científicas que busca contestar fatos estabelecidos e fartamente documentados em prol de uma ideologia que geralmente orbita em torno de uma “grande conspiração” ocultada do grande público (nesse sentido, o terraplanismo seria uma espécie de negacionismo).
De maneira cínica, no sentido trabalhado por Baldini e Di Nizo (2015) em O cinismo como prática ideológica, o negacionismo produz a disseminação da mentira como aparência de revelação da verdade. Desse modo, a eficácia do discurso negacionista está em conseguir simular o percurso crítico de exposição do pensamento. Nessa simulação, segundo Lima (2020), no artigo Discursos negacionistas disseminados em rede, “os efeitos de real visam conferir credibilidade ao discurso”.
Contemporaneamente, não é possível desvincular o modo de funcionamento do discurso negacionista de sua circulação pelos meios digitais. De fato, atualmente, tanto a discursividade negacionista quanto as narrativas revisionistas ganham espaço com as fake news e “são impulsionadas pelas formas de circulação das tecnologias digitais e por seu funcionamento técnico (como a algoritmização)”, conforme afirmam Lunkes e Dela Silva (2020) no artigo Lembrar é resistir’(?): Discursos sobre o regime militar em disputa. Nessa direção, vídeos “reveladores” e supostamente “censurados” ou “proibidos” alcançam alto grau de compartilhamento em aplicativos como o TikTok e WhatsApp, muitas vezes provocando certa reatividade no debate público. Alia-se a isso, conforme podemos ver em Zoppi-Fontana (2021, p. 93), o fato de que as fake news “não são atribuídas a nenhum locutor definido”, o que permite apagar a alusão a sua origem e disseminação. É dessa própria forma de circular como uma espécie de boato (Orlandi, 2001), criando um efeito de rumor (Barbosa Filho, 2018 e Silveira, 2016), que as fake news retiram sua eficácia enunciativa.
FIGURA 2
O negacionismo atrelado à proliferação de notícias que negam a realidade pode ser associado à noção de pós-verdade, eleita palavra do ano de 2016 pelo Oxford Dictionary que, desde então, aponta para seu funcionamento como um solo fértil para o cenário de circulação de falsas notícias sobre a pandemia. Segundo o dicionário, trata-se de um adjetivo “relacionado a ou denotando circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e crenças pessoais”[3]. Na pós-verdade, a efemeridade dos acontecimentos e a acelerada produção e circulação de conteúdo midiático falso surgem como sustentação à ilusão do público de estar sempre atualizado e prenhe de “opinião” sobre os temas em pauta. Diante da fluidez da informação, o sujeito encontra uma versão que tende a interpretar, de modo simplista, como “fato ou fake”, como se tivesse, finalmente, encontrado uma estabilidade de sentidos. Dessa maneira, é possível concordar com Siebert e Pereira (2020), quando afirmam que “aderimos ao que nos convém como verdade através da ideologia, que atua como dispositivo ordenador de informação, rendendo-lhe sentidos”. No entanto, conforme Zoppi-Fontana (2021, p. 97) expõe em sua análise da pós-verdade e das fake news, enquanto esta, conforme já mencionamos, funciona ao modo de um boato, a pós-verdade, enunciativamente, está ligada “a um locutor identificável por um nome próprio que ocupa um lugar social de destaque no campo político”.
Outro ponto importante do discurso negacionista é a construção do medo como afeto mobilizador. Conforme afirma Oliveira (2021), “nessa intrincada rede de pseudofatos e pseudoameaças tecida pelo discurso negacionista, a construção do medo vai além do discurso anti-ciência”, produzindo uma disjunção entre “nós” e “eles”, termos que vão sendo definidos ao sabor da conjuntura e que podem abrigar diversos valores semânticos (como por exemplo a distinção “patriotas x esquerdistas” ou “bolsominions x petralhas”).
No caso da pandemia, o discurso negacionista em geral se apoiou numa posição retrógada de direita que construiu como seus opositores os “globalistas”, os “chineses”, a “mídia esquerdista”, etc. A sucessão de enunciados negacionistas, e até mesmo falaciosos, aliás, é farta demais para um verbete e listamos aqui apenas alguns (todos ditos pelo Presidente da República que, reiteradamente, produziu e fez circular não apenas enunciados negacionistas, mas também fake news): “não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar”, “não há nada comprovado cientificamente sobre essa vacina aí”, “parece que está começando a ir embora essa questão do vírus”, “nunca vi ninguém morrer por tomar hidroxicloroquina”, “quem pegou o vírus está imunizado”, “não tá havendo morte de criança que justifique [a vacina]”, “ômicron é bem-vinda”, entre outros.
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Como uma voz de autoridade — comprovadamente não médico-sanitária, mas supostamente portadora de algum saber/poder, dado o seu cargo no poder executivo — os dizeres do Presidente da República foram vastamente replicados. Pelas mídias sociais, o mesmo discurso circula, materializado em mensagens com tom conspiratório e foram sistematicamente encaminhadas, tanto como reveladoras de “verdades escondidas”, quanto indicadoras daquilo que “eles não querem que você saiba” sobre a Covid-19. O portal do Instituto Butantan reuniu alguns desses ditos, a fim de “esclarecer dúvidas” — o que é interessante, uma vez que a dúvida não nos é perceptível, apenas a certeza acusatória de uma omissão da verdade. São exemplos: “Ômicron foi inventada para justificar efeitos colaterais das vacinas”, “O SARS-CoV-2 é [uma] peste chinesa”, “Ninguém morreu por causa da variante ômicron”, “Quantidade de alumínio na CoronaVac é prejudicial”, “Quem toma a vacina contra a Covid-19 desenvolve AIDS mais rapidamente”, “CoronaVac é fruto de parceria entre filho do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do ex-governador de São Paulo, João Doria”, “Vacinas contra a Covid-19 causam impotência”, entre outras tantas.
FIGURA 4
Negacionismo científico (Benett)
De toda forma, nem só de negação da verdade se faz o negacionismo: seu funcionamento está pautado, sim, na desautorização das autoridades sobre determinado tema, mas também na criação de outros dizeres exaustivamente proliferados produzindo “efeitos de verdade”. Seja como for, o que está em jogo no negacionismo em contexto pandêmico no Brasil é a afirmação de algo para que outra coisa seja esquecida, uma vez que, como mostram Sibert e Pereira (2020), o “foco é a ressonância do sentido”, uma vez que quanto mais repetida uma informação, mais crível ela parecerá ser, o que justifica a circulação de discursos por diferentes mídias e associados a vários supostos especialistas, convocados a confrontar publicamente os veículos de mídia tradicionais e a abalar a credibilidade das informações noticiadas.
Com isso, tira-se o foco do que é preciso ser discutido, como o direito universal à saúde, o aparelhamento do Estado, o genocídio da população negra e indígena, o desrespeito ao luto na pandemia ou a exaustão das mulheres. Chega-se ao ponto de afirmar que haveria um chip implantado nas vacinas com intuito de controlar os cidadãos, operando aí a manutenção de uma política do esquecimento que vigora desde o final da ditadura, como salienta Indursky (2020).
Em psicanálise, o negacionismo seria explicado pela manifestação da Recusa, relacionada às crenças aprisionadoras do sujeito, tão rigidamente estabelecidas que não podem ser desfeitas nem mesmo diante da comprovação dos fatos por vias testemunhais ou científicas. Este processo funciona como defesa psíquica contra uma ideia de “ameaça externa” — ao sujeito, no caso do vírus e da morte, mas também, de modo coletivo, à pátria ou à nação, no caso do anti-semitismo ou dos discursos xenófobos correntes atualmente, por exemplo. Como bem nos aponta Chreim (2021, p. 332), “no cenário da pandemia, a realidade se tornou tão dura de suportar que as manifestações da Recusa vêm ao socorro de um psiquismo inundado pela intensidade traumática”.
No entanto, a leitura da recusa enquanto defesa psíquica não justifica o uso político que se faz do medo, nem tampouco o apoio à negligência no combate à pandemia ou os efeitos nefastos do que Milman (2000), no artigo Negacionismo: gênese e desenvolvimento do extermínio conceitual, nomeou como “perspectivismo relativista, do verbalismo vazio, do cinismo e da demagogia pseudocientífica”. Na verdade, talvez fosse mais produtivo justamente abandonar a lógica defensiva do medo e nos abrirmos para o desamparo, na medida em que é esse “o afeto que nos abre para os vínculos sociais” (Safatle 2015, p. 54). Desse modo, o campo da política poderia ser pensado “enquanto prática que permite ao desamparo aparecer como fundamento de produtividade de novas formas sociais” (Safatle, 2015, p. 67) e não como faz o negacionismo, por meio da invocação de formas anacrônicas de sociabilidade.
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Diante disso, há, sem dúvida, um esforço da comunidade científica de ampliar o diálogo com a sociedade, principalmente via redes sociais, na tentativa de combater a “praga da desinformação”, desacreditar as fake news e insistir na verificação das fontes e dos conteúdos noticiosos, além de trazer para o debate temas e pontos de vista marginalizados ou frequentemente excluídos do debate público. Entretanto, se o fenômeno do negacionismo (juntamente com as fake news e a pós-verdade) se fortalece justamente no momento do excesso de notícias, não se trata de “ver para crer”, pois o combate não se dá por meio da apresentação das provas ou das evidências.
Responder frontalmente a esse discurso é operar segundo a sua própria estratégia, colocando em simetria posições inconciliáveis. É necessário um recuo como modo de enfrentamento, evitando responder a ele, conforme salienta Orlandi (2020), “mas produzindo um distanciamento, tirando dele o sentido universal, evidente […] devolvendo-o a seus compromissos com as formações discursivas em que ele produz e faz sentido (o da extrema-direita)”. E, sobretudo, é preciso insistir na reflexão sobre a relevância do papel da memória no país.
Referências
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BARBOSA FILHO, F. R. O discurso antiafricano na Bahia do século XIX. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018.
CHREIM, V. Dimensões da Recusa. São Paulo: Blucher, 2021.
CURCINO, L; SARGENTINI, V; PIOVEZANI, C. (orgs.) Discurso e (pós)verdade. São Paulo: Editora Parábola, 2021.
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INDURSKY, F. “O teatro do grotesco como cenário da desconstrução do Brasil”. In: Revista da ABRALIN, v. 19, n. 3, p. 365-388, 17 dez. 2020.
LIMA, H. “Discursos negacionistas disseminados em rede”. In: Revista da ABRALIN, v. 19, n. 3, p. 389-408, 17 dez. 2020.
LUNKES, F.; DELA SILVA, S. “‘Lembrar é resistir’(?): Discursos sobre o regime militar em disputa”. In: Revista da ABRALIN, v. 19, n.O efeito de rumor na discursivização do corpo político-midiático 3, p. 348-364, 17 dez. 2020.
MILMAN, L. “Negacionismo: Génese e desenvolvimento do extermínio conceitual”. In: MILMAN, L; VIZENTINI, P. F. (orgs.). Neonazismo, negacionismo e extremismo político. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRG: CORAG, 2000.
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ZOPPI-FONTANA, M. “Pós-verdade e enunciação política: entre a mentira e o rumor”. In: CURCINO, L; SARGENTINI, V; PIOVEZANI, C. Discurso e (pós)verdade. São Paulo: Parábola, 2021.
Notícias
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É #fake que vacina contra Covid-19 tem chip líquido e inteligência artificial para controle populacional. Portal G1, 27 de jan. de 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/fato-ou-fake/coronavirus/noticia/2021/01/27/e-fake-que-vacina-contra-covid-19-tem-chip-liquido-e-inteligencia-artificial-para-controle-populacional.ghtml>. Acesso em: 13 de jul. 2022.
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Word of the year 2016. Oxford Languages, 16 de nov. de 2016. Disponível em: <https://languages.oup.com/word-of-the-year/2016/>. Acesso em: 13 de jul. 2022.
[1] Sem edição em português. Em tradução livre, o título é “Síndrome de Vichy: de 1944 até os dias atuais”.
[2] O extermínio de 6 milhões de judeus e outras minorias étnicas, além de poloneses, opositores políticos e religiosos, homossexuais e cidadãos soviéticos.
[3] Tradução livre do verbete post-truth: “relating to or denoting circumstances in which objective facts are less influential in shaping public opinion than appeals to emotion and personal belief”.