Autores: Mariana de Almeida Prado Fagá, Fernanda Castelano Rodrigues e William Fernandes Luna
A população do município de São Gabriel da Cachoeira (SGC) é de 45.564 pessoas e 90% são indígenas de diversas etnias (Arapaço, Baniwa, Barasana, Baré, Desana, Hupdá, Karapanã, Kubeo, Kuripako, Makuna, Miriti-tapuya, Nadob, Pira-tapuya, Siriano, Tariano, Tukano, Tuyuka, Wanana, Werekena e Yanomami). São faladas pelo menos 18 línguas de cinco diferentes troncos linguísticos em SGC e o município foi o primeiro no Brasil a cooficializar três idiomas, por meio de uma lei municipal de 2002: Nheengatu, Tukano e Baniwa. SGC fica no noroeste da Amazônia, região conhecida como “cabeça do cachorro”, a 852 km da capital do Amazonas, Manaus, e faz fronteira com Colômbia e Venezuela. Com uma extensão territorial de 112 km2 – maior que todo o estado de Santa Catarina – , seu território se estende ao longo das calhas dos Rios Negro, Xié, Tiquié, Uaupés e Içana. O acesso à cidade e às comunidades é bastante difícil, sendo possível apenas por barco ou avião.
Desde o início da pandemia da COVID-19, havia muita apreensão quanto à chegada do vírus nas comunidades da região, já que a população indígena é considerada grupo susceptível a doenças infecciosas e já enfrenta uma grande carga de enfermidades como malária, leishmaniose, tuberculose, hanseníase e dengue, além dos agravos e doenças não infecciosas como desnutrição, alcoolismo, traumas e violências.
Somam-se a isso as dificuldades de resposta adequada das equipes de saúde locais e as dificuldades de logística e transporte. Dois Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) atuam na região, o DSEI Alto Rio Negro e DSEI Yanomami, sendo que o DSEI Alto Rio Negro atua também nos municípios de Santa Isabel e Barcelos e o DSEI Yanomami na comunidade de Maturacá.
O município possui apenas o Hospital de Guarnição do Exército (HGU), que conta com 59 leitos, mas nenhum de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), e apenas sete respiradores. Pacientes graves precisam ser transferidos em uma unidade aéreo médica para Manaus, o tempo de deslocamento é de pelo menos 2 horas até a capital.
Por essas características, mas não apenas, São Gabriel da Cachoeira é hoje uma das cidades do país que mais sofre com o novo coronavírus: no último mês, houve um aumento de 2 para 929 casos, com registro de 21 mortes, entre elas a de Flácido Yanomami, 68 anos, animador de festas tradicionais da comunidade de Maturacá, e Feliciano Lana, da etnia Desana, importante pintor, ilustrador e divulgador das tradições culturais do Rio Negro.
Em resposta à pandemia, as ações de enfrentamento estão sendo realizadas principalmente graças à organização dos próprios povos indígenas, que contam com o apoio de organizações não governamentais e da Prefeitura local.
Segundo Marivelton Baré, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (FOIRN) há um grande esforço de comunicação, principalmente da radiofonia, para informar todas as comunidades sobres os riscos que o coronavírus representa para os indígenas.
O Instituto Socioambiental (ISA) publicou em abril a cartilha “Coronavírus (COVID-19). Tome cuidado, parente!”, com objetivo de apoiar os trabalhos de informação e comunicação para os povos indígenas do Rio Negro que vem sendo realizado pelo Comitê de Prevenção e Enfrentamento ao novo Coronavírus (COVID-19) da Prefeitura do Município de São Gabriel da Cachoeira. O conteúdo do informativo foi elaborado originalmente em português pela Equipe do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA) e traduzido para as línguas Baniwa, Nheengatu, Tukano, Dâw e Hupdá.
A equipe de vigilância epidemiológica investiga como têm ocorrido os contágios. O Comitê de Prevenção e Enfrentamento ao novo Coronavírus (COVID-19) tem reforçado a necessidade das medidas de distanciamento social. O prefeito Clóvis Saldanha (PT), que testou positivo para o coronavírus no início de maio, decretou toque de recolher das 21h às 6h na cidade, proibiu o transporte público de passageiros e o serviço de táxi-lotação, restringiu a abertura do comércio local e impôs o uso obrigatório de máscaras. A Secretaria Municipal de Saúde (SEMSA) tem buscado aumentar a estrutura de atendimento e cobertura de saúde, com contratação de novos profissionais e aquisição de equipamentos de proteção individual (EPI), além de buscar viabilizar a construção de um hospital de campanha. Ademais, entre os dias 26 e 29 de maio, a SEMSA promoveu a testagem em massa da COVID-19, realizando testes rápidos em pessoas com mais de 20 anos que estivessem apresentando sintomas de síndrome gripal.
A organização não governamental (ONG) Expedicionários da Saúde fez doação de máscaras equivalentes a N91 e o ISA, em parceria com mulheres indígenas Sateré Mawé, doou mil máscaras de tecido, e prepara mais oito mil que serão feitas por mulheres indígenas do Alto Rio Negro. Esta ONG também está trabalhando em parceria com os DSEIs na montagem de enfermarias avançadas, por meio de doações para compra de concentradores e cilindros de oxigênio, além de insumos e equipamentos necessários.
No dia 27 de maio, os Médicos Sem Fronteiras (MSF) chegaram à cidade. Com o ISA e em sinergia com o Comitê de Crise da COVID-19, irão traçar estratégias para diminuir a propagação das infecções e apoiar as estruturas do município.
As dificuldades de ter equipes de saúde vinculadas ao DSEI que consigam fazer o acompanhamento da evolução do coronavírus na região é grande, já que nos últimos anos tem se investido menos na formação de agentes indígenas de saúde. Por isso, os indígenas têm utilizado seus conhecimentos ou a medicina tradicional para tentar proteger as populações. Segundo reportagem do ISA, famílias yanomami seguiram para dentro da floresta para tentar se proteger da epidemia. Mesmo assim, o vírus chegou à comunidade e as pessoas estão se tratando com chá caseiro e remédios da medicina tradicional. O vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, Dario Kopenawa, ressaltou que um dos grandes vetores da doença entre os yanomami é a circulação ilegal de garimpeiros na Terra Indígena, além do contato com pessoas das cidades, o que se agravou com o deslocamento de muitos indígenas para receber o auxílio emergencial do governo federal. As lideranças orientam que os indígenas evitem contato com as populações urbanas nesse período.
Outra liderança indígena, André Baniwa, também avalia que a busca pelo auxílio emergencial pode ter agravado o avanço da doença nas comunidades do Rio Içana. Ele também identifica os encontros religiosos como pontos de favorecimento da transmissão do vírus. A região do Içana é predominantemente evangélica. Como tratamento, os indígenas da etnia baniwa também usam remédios tradicionais, até mesmo porque há poucas equipes de saúde na área e não há acompanhamento, apenas transporte de pacientes. André Baniwa alerta ainda para o fato que não está havendo treinamento de agentes indígenas de saúde: “o governo quer o fim dos povos indígenas”, disse.
A presidenta da Associação das Mulheres indígenas do distrito de Iauaretê (Amidi) Margarida Sodré Maia, da etnia tukano, também conta que os indígenas usam a medicina tradicional para o tratamento, mas se preocupa com a situação das comunidades que estão mais distantes da sede do município, como as que compõem a Coordenadoria das Organizações Indígenas do Distrito de Iauaretê (COIDI), para as quais o acesso ainda é mais difícil devido às cachoeiras. Margarida destaca em especial a comunidade da etnia Hupdá, que vive em região com acesso e comunicação ainda mais precários.
O FOIRN criou a Campanha Rio Negro, Nós Cuidamos, com o objetivo de arrecadar doações emergenciais para as 750 comunidades indígenas de 23 etnias do Rio Negro durante a pandemia. As doações podem ser feitas por cartão de crédito, PayPal ou depósito direto na conta do Fundo Foirn.
O cenário que se coloca para o município de São Gabriel da Cachoeira é bastante complexo. Pelas reportagens e relatos que chegam da região, as principais iniciativas de enfrentamento à pandemia de COVID-19 têm partido dos próprios indígenas, de suas organizações, do poder público municipal e algumas organizações não governamentais que já atuavam na região. Nessa região, como em outras do país, o Governo Federal não está contribuindo, como deveria, com a luta contra o espalhamento do novo coronavírus e com a construção de condições mínimas para o tratamento da COVID-19.
Referências:
Crédito da imagem: Valter Campanato/Ag. Brasil no Fotos públicas