Por Nadia Santos e Raquel Noronha
O termo mãe solo é formado pelo substantivo feminino “mãe” e determinado pelo adjetivo “solo”. Nele, a palavra mãe significa, na acepção dicionarizada, “mulher que deu à luz, ou que cria ou criou um ou mais filhos” e“solo” funciona como adjetivo, caracterizando essa maternidade. No dicionário (FERREIRA, 1999), “solo”, dentre outros significados, pode ser “a voz ou instrumento que executa um trecho musical que lhe é especificamente destinado” e, por extensão, pode significar “desacompanhado, a sós”. No dicionário Houaiss (2009), também em referência à música, “solo” significa a “passagem ou trecho musical para ser executado por um só instrumento ou uma só voz, com acompanhamento ou não, em conjunto coral ou orquestral”.
Ainda não dicionarizado[1], o termo mãe solo denomina todas as mulheres responsáveis integralmente pela criação e educação de uma criança, tanto nas questões financeiras, quanto na dedicação do tempo. De acordo com o Instituto de Geografia e Estatística do Brasil (IBGE), em pesquisa publicada no começo de 2021[2], as mulheres gastam quase o dobro de tempo em tarefas domésticas e no cuidado com os filhos em relação aos homens[3]. Nesse sentido, mães solo seriam mulheres que exercem a parentalidade de maneira solitária, sem apoio na divisão de tarefas e nos cuidados com as crianças. O que não significa, no entanto, que essa característica de desamparo seja exclusiva das mães fora de um relacionamento: muitas mulheres que têm companheiros/companheiras também exercem a maternidade de maneira solitária, mesmo contando com a presença física de outra pessoa.
Ainda em processo de popularização, mãe solo busca produzir deslocamentos nos sentidos depreciativos do termo “mãe solteira” e denunciar a naturalização da relação entre a maternidade e o estado civil. De acordo com a socióloga Ana Liési Thurler (2011), as mulheres começaram a problematizar a designação “mãe solteira” pois seu sentido remete ao pensamento do patriarcado, que considera o casamento como o espaço legítimo para o nascimento.No entanto, todo filho é legítimo, e estar em um relacionamento não significa, necessariamente, compartilhar os cuidados que uma criança necessita. Em relação à designação, observamos que documentos oficiais do Estado têm optado por “mulheres chefes de família”[4] ou “mulher provedora de família monoparental”[5].
A condição da mãe solo no Brasil, que já vinha sendo pauta na mídia, com a pandemia ganhou maior notoriedade pela vulnerabilidade que o acúmulo de funções dessas mães gerou. A questão passou a ser assunto constante da imprensa brasileira, mostrando as dificuldades que as mães solo enfrentaram e estão enfrentando, principalmente com o desemprego, mas também com o fechamento temporário das creches e escolas. Esses problemas afetaram e seguem afetando a saúde mental dessas mulheres, que se sentem responsáveis por suprir as necessidades básicas dos filhos, e se culpam quando não conseguem fazê-lo. De acordo com dados do IBGE, o Brasil tem mais de 11 milhões de mães solo, com 57% abaixo da linha da pobreza[6], o que indica a vulnerabilidade das mulheres como uma das consequências da invisibilidade de um trabalho que é projetado como sua responsabilidade.
Com o intuito de trazer luz a esse trabalho historicamente tão invisibilizado, coletamos uma série de reportagens publicadas em grandes veículos da mídia. Dessas reportagens, fizemos alguns recortes. Observamos, nas reportagens, que as falas das mães solo materializam a angústia e o sentimento de impotência que a pandemia acentuou, pois além da dificuldade financeira, há o medo de ficarem doentes e não terem quem cuide dos filhos. Observemos a imagem 1 a seguir:
i1[7]
A imagem (i1) apresentada ilustra quanto a situação pandêmica acentuou a sobrecarga das mães, reforçando o imaginário de que a mulher estaria habituada a fazer várias tarefas ao mesmo tempo – e de que dá conta disso, mesmo que tenha que lançar mão de toda sorte de malabarismo para isso. Porém, mais que hábito, a pandemia ajudou a desvelar que as mulheres o fazem por falta absoluta de apoio, como única forma de prover o sustento de seus filhos e de si. Essa sobrecarga de trabalho pressiona as mães, gerando uma excessiva sobrecarga mental e ocasionando, muitas vezes, problemas também em sua saúde física.
A seguir, trazemos três recortes para iniciarmos nossa análise:
R1- “Sinto pânico só de pensar em ficar doente”[8]
R2-“Não posso me dar ao luxo de ficar com depressão”[9]
R3- “Tive crise de ansiedade e depressão, porque você se sente muito pressionada, muito exausta e ainda tem de fazer suas coisas. Durante a pandemia eu me senti muito pressionada”[10]
Notamos, nessas falas, um enfoque na questão psicológica, justificado pelo turbilhão de mudanças que a pandemia provocou. As mulheres são pressionadas, mas não podem demonstrar sua exaustão, e sentem que não podem descansar, porque têm a casa, os filhos, os pais idosos para cuidar. A responsabilização pelas tarefas de cuidado esgota sua saúde mental e física. Nesse sentido, cuidar de sua própria saúde é visto como um “luxo”, privilégio, ou mesmo algo supérfluo.
Além disso, os recortes evidenciam o fato de que o cuidado é assumido socialmente como uma tarefa feminina e as mulheres são responsabilizadas por acharem sozinhas soluções para uma situação que é, de fato, estrutural e sistêmica. Isso ficou bem evidente no contexto pandêmico. O cuidar das novas gerações (ou das gerações idosas) não é colocado como central nas políticas públicas, que não leva em consideração sua importância vital para a manutenção do próprio sistema. Ao contrário, explora-se à exaustão as mulheres, fazendo com que acreditem que cuidar é um ato de amor e imputando-lhes toda a culpa por eventuais falhas.
Quando se fala em “criar” e “cuidar”, na sociedade contemporânea, fala-se de um trabalho invisibilizado, que comumente é projetado como de responsabilidade das mulheres. Autoras como Silvia Federici (2017; 2019) chamam-no de “trabalho reprodutivo” e entendem que sua importância está relacionada com a reposição da força de trabalho no sistema capitalista, ou seja, ter filhos seria a maneira de se ter sempre novos trabalhadores disponíveis.
A falta de reconhecimento, por parte da sociedade em geral, do trabalho reprodutivo faz com que este não seja entendido enquanto trabalho. Nesse sentido, acredita-se que as mulheres o
fazem por amor, amor aos filhos, à família. Essa falta de reconhecimento, muitas vezes, implica em entender que as possíveis demandas das mulheres tanto para que a responsabilidade pelo trabalho reprodutivo seja igualmente distribuída entre quem assume a relação parental, quanto para que o Estado e a sociedade civil criem espaços coletivos e/ou institucionais de cuidado de crianças e pessoas idosas sejam vistas como “falta de amor”, e não como uma justa reivindicação por melhores condições para desempenharem o trabalho reprodutivo e de cuidado.
Ser mãe solo na pandemia, nos discursos que analisamos, foi e continua sendo enfrentar um acúmulo de exigências somadas às pressões que a sociedade já impõe às mulheres. E é uma questão que não pode ser entendida e analisada somente a partir da perspectiva de gênero, mas também deve-se levar em conta a questão racial, uma vez que a maioria das mães solo são mulheres negras[11], inclusive nas reportagens que analisamos, a maioria dos enunciados eram de mães solo negras, que trabalhavam como empregada doméstica ou na indústria, mas que foram demitidas logo no início da pandemia.
Nesse sentido, autoras que se dedicam a estudar a interseccionalidade, como Carla Akotirene (2018), são fundamentais para entendermos esse entrelaçamento de opressões que colocam as mulheres negras em posição de vulnerabilidade social, relegando a seus filhos a manutenção desse lugar de falta de direitos. Nesse período pandêmico, as responsabilidades das mães solo aumentaram, sem o apoio adequado e necessário, porém, da sociedade e dos governos, pois continua operando o imaginário de superação, conforme apontado por Zoppi-Fontana (2017), a partir do qual as mulheres “suportam tudo”, “são fortes e guerreiras”, fazendo com que elas continuem vivendo uma condição opressora naturalizada como própria de sua existência. A recusa em relação a essa suposta fama de forte mostra o sofrimento dessas mulheres, além de demonstrar o efeito da naturalização do “heroísmo”, a partir do qual se espera que a mulher seja capaz de resolver sempre tudo, trazendo um horizonte também de fracasso.
Por fim, os recortes apontam para a necessidade urgente de produzir políticas públicas[12] de apoio às mães, reconhecendo, efetivamente, o trabalho doméstico e reprodutivo não apenas como trabalho, mas como cruciais para o funcionamento social. No caso do Brasil, é ainda imprescindível destacar a importância dessas políticas públicas prestarem especial atenção às mães solo negras e pobres, que foram comprovadamente as mais afetadas pela pandemia do novo coronavírus.
REFERÊNCIAS
AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte, MG: Justificando, 2018.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo, SP: Elefante, 2017.
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo, SP: Elefante, 2019.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3a edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
HOUAISS. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, HUNT, Lynn, 2009.
THURLER, Ana Liési. Em nome da Mãe: o não reconhecimento paterno no Brasil. Florianópolis, SC: Editora Mulheres, 2011.
ZOPPI-FONTANA, Mónica G. “Domesticar o acontecimento: metáforas e metonímias do trabalho doméstico no Brasil” em Mulheres em discurso: identificações de gênero e práticas de resistência. Organizado por Zoppi-Fontana, M. e Ferrari, A. J., vol. 2. Campinas, SP: Pontes Editores, 2017.
NOTAS
[1] Em pesquisa na ferramenta Google Trends, no período da pandemia de Covid-19, iniciado em março de 2020, o uso desse termo aumentou consideravelmente em relação aos anos anteriores. Para mais informações, consultar o link: https://trends.google.com.br/trends/explore?date=today%205-y&geo=BR&q=m%C3%A3e%20solo (consultado em 10/6/2022).
[2] Em 2021, 53,9 mil crianças foram registradas sem o nome do pai. Em 2022, de janeiro a abril, 56,9 mil crianças já foram registradas sem o nome do pai, apresentando um número bem maior considerando o ano anterior. A esse respeito ver: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2022-05/quase-57-mil-recem-nascidos-foram-registrados-sem-o-nome-do-pai (consultado em 10/6/2022).
[3] A esse respeito ver: https://oglobo.globo.com/economia/celina/mulheres-dedicam-quase-dobro-do-tempo-do-que-homens-tarefas-do-lar-24908717 (consultado em 6/11/2021).
[4] A esse respeito, ver:
[5] A esse respeito, ver: https://www.camara.leg.br/noticias/704258-projeto-institui-auxilio-permanente-de-r-1-200-para-mulher-provedora-de-familia-monoparental/
https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=mulher+provedora+de+fam%C3%ADlia+monoparental
[6] A esse respeito ver: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/05/10/dia-das-maes-a-vida-das-11-milhoes-de-brasileiras-que-criam-os-filhos-sozinhas.ghtml (consultado em 6/11/2021)
[7] Disponível em: https://www.brasildefatopb.com.br/2020/12/17/maes-na-pandemia-sao-realmente-guerreiras-ou-estao-so-sobrevivendo(consultado em 25/11/2021).
[8] Disponível em: Mães na pandemia: ‘Sinto pânico só de pensar em ficar doente’ – Notícias – R7 São Paulo (consultado em 10/10/2021).
[9] Disponível em:Covid-19 no Brasil: Os estragos invisíveis da pandemia para as mães solo | Atualidade | EL PAÍS Brasil (elpais.com)(consultado em 10/10/2021)
[10] Disponível em: Dia das Mães: mães contam desafios da maternidade ‘solo’ na pandemia | Vale do Paraíba e Região | G1 (globo.com). (consultado em 10/10/2021).
[11] A esse respeito ver: https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/reconstrucao-maes-solo/
[12] Alguns países já adotaram medidas de atenção às mães solo. Na Argentina, por exemplo, desde agosto de 2021, o cuidado com os filhos passou a contar como tempo de serviço na hora que a mulher solicitar a aposentadoria. A medida visa atender mães com 60 anos ou mais, que não têm os 30 anos de contribuição exigidos por lei, pois saíram do mercado de trabalho para dedicar seu tempo aos filhos. Ver mais informações em: Cuidado com os filhos contará para aposentadoria das mães na Argentina | Economia | G1 (globo.com) (Consultado em 27/11/2021). No Brasil, tramita na Câmara dos deputados o Projeto de Lei 2099/20, que institui auxílio permanente de R$ 1.200 mensais às mulheres, maiores de 18 anos, sem emprego formal e que não recebe benefício previdenciário ou assistencial, provedoras de famílias monoparentais. O projeto já foi aprovado pela Comissão dos Direitos da Mulher e ainda será analisado pelas comissões Seguridade Social e Família, Finanças e Tributação e Constituição e Justiça e de Cidadania. Mais informações disponíveis em: Comissão aprova criação de auxílio permanente de R$ 1.200 para mães chefes de família – Notícias – Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br) (Consultado em 27/11/2021).