Por Elisa Mara do Nascimento e Thales de Medeiros Ribeiro

 

O luto pode ser definido como uma reação à perda de uma pessoa querida. Entre as acepções mais comuns, o Dicionário Michaelis Online[1] registra que esse substantivo remete ao “sentimento de pesar ou tristeza pela morte de alguém” e à “tristeza profunda causada por grande calamidade; dor, mágoa, aflição”. O termo designa tanto as perdas singulares quanto as coletivas (o luto nacional, por exemplo), além daquelas que não são diretamente relacionadas à morte, como a perda da pátria, da liberdade ou de determinados ideais.[2] O luto se refere ainda às marcas e rituais que simbolizam a morte, a exemplo da convenção de usar trajes pretos e sóbrios como sinal de pesar ou o tempo que dura o uso de tais vestes.

Diante de uma tendência à “normatização” do luto na contemporaneidade, o tempo socialmente esperado para a elaboração de uma perda se torna bastante reduzido. A edição mais recente do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-V) chega a estipular que a duração máxima de um luto “normal” não deveria ultrapassar 12 meses (ou 6, no caso de crianças). Quando excede esse tempo, o luto é nomeado como “persistente” e compreendido como uma patologia.

Em direção contrária, a perspectiva psicanalítica[3] considera que uma perda significativa sempre implica um difícil trabalho de luto, processo que envolve um tempo cuja duração não pode ser concebida por nenhuma outra medida que não a própria. Isto é, o luto não segue uma duração pré-estabelecida. Além disso, nenhuma perda anterior pode nos preparar suficientemente para o abalo que sucede ao desaparecimento do que esteve presente até então, pois a experiência de perda  é singular em cada caso. O cenário pandêmico atual e o elevado número de mortes por COVID-19 alteraram não somente os antigos rituais do luto, mas a própria forma de experienciar a perda, tanto no âmbito individual, quanto no coletivo.[4]

Em Notas sobre o luto, Chimamanda Ngozi Adichie  relata o período que sucedeu à morte de seu pai, ocorrida em meio à pandemia de coronavírus. Em notas curtas e aparentemente incompletas, as reflexões dessa escritora feminista se mostram valiosas pela busca de descrever sua dor em palavras, esbarrando inevitavelmente na insuficiência dessas mesmas palavras. Frustração necessária: a linguagem não dá conta de preencher o buraco deixado por quem partiu, mas certamente toca, de modo suave, em suas fronteiras.

A pessoa está sozinha em sua tentativa de conviver com a ausência e estabelecer o valor da marca deixada por uma perda. Contudo, no que se refere à pandemia e a seus impactos, a escritora foi acompanhada por muitos outros que também sofreram por não poderem se deslocar para se despedirem de quem amam devido ao fechamento dos aeroportos e demais restrições de deslocamento. Assim como ocorre em outras produções estéticas e políticas, o livro Notas sobre o luto aborda os efeitos das mudanças históricas que afetam o trabalho de luto. A pandemia de Covid-19 expõe uma massificação da morte a nível global, há tempos não vista em nossa história. Ela nos coloca diante de uma experiência radical de perda, que não se refere apenas às mortes de entes queridos, mas também à impossibilidade de lhes prestar os devidos rituais funerários. Estes últimos passaram a ter medidas sanitárias mais rígidas, como a de permanecer com o caixão fechado e a de restringir o número máximo de pessoas, bem como o próprio tempo de vigília.[5]

Além dos ritos fúnebres, outra condição fundamental para a realização do trabalho de luto é o reconhecimento (inclusive, público) da morte em sua condição de perda. Ora, na condução do combate à pandemia feito pelo governo atual, não parece haver as condições necessárias para que haja uma elaboração coletiva dessas perdas. A postura de completo descaso em relação aos doentes, mortos e enlutados, que dificulta ou impossibilita a criação de uma memória para os familiares e amigos das vítimas, é reproduzida no campo do discurso político, em enunciados e tomadas de posição negacionistas em relação ao que era vivenciado, como em “não dá para ir além do que estamos fazendo”; “todo mundo vai morrer um dia”, “eu não sou coveiro” etc.[6]

Recentemente, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, que responsabilizou o Governo pela perda de mais de 600 mil vidas, encerrou suas atividades ouvindo depoimentos de enlutados, em um gesto de resistência à posição negacionista. Outro exemplo que circulou na mídia advinha dos próprios enlutados que, no dia da vacinação, portavam fotografias ou cartazes com uma menção a familiares mortos pela doença, como observamos em algumas das imagens apresentadas a seguir:

Os diversos memoriais virtuais criados ao longo do período de pandemia são também uma potente forma de resistência à interdição dos rituais fúnebres, tão importantes para marcar o início de um luto, e contra a banalização das mortes, descritas em termos meramente numéricos. Forma de resistência, portanto, à normatização da morte, abrindo espaço para uma escrita singular e, nessa ação, marcando a singularidade da perda decorrente da morte de uma pessoa amada. Em sua insistência na escrita de uma outra memória, há um movimento de reconhecer publicamente a existência das perdas significativas.

Para ilustrar esse trabalho de criação de espaços de memória, citamos os memoriais Inumeráveis e @reliquia.rum, idealizados respectivamente pelo artista Edson Pavoni e pela antropóloga Débora Diniz:

 Inumeráveis é um “memorial dedicado à história de cada uma das vítimas do coronavírus no Brasil”. Nele, encontramos milhares de nomes completos, cada um seguido pela idade que aquela pessoa tinha quando morreu e por um epitáfio-epígrafe cuidadosamente pensado pelos voluntários do projeto a partir de sua escuta do depoimento dos enlutados. É possível ler um texto-tributo sobre aquela pessoa que deixou saudades aos seus familiares e amigos ao clicar sobre seu nome. A ausência de fotos é proposital, pois as imagens devem estar contidas nos textos.[7] Ao fim da longa lista, da qual não sabemos a numeração precisa, encontramos os versos de autoria de Edson Pavoni:

Não há quem goste de ser número

gente merece existir em prosa

O projeto de Débora Diniz em parceria com o designer gráfico Ramon Navarro, apesar de suas singularidades, segue a mesma direção do projeto anterior, trazendo à tona um luto coletivo pelas vítimas do coronavírus. A descrição apresenta o projeto da seguinte maneira: “Relicários são memórias, aquilo que guardamos. Aqui são relicários de uma epidemia no Brasil”. O destaque é dado às mulheres mortas, sejam elas jovens, crianças, idosas, negras ou indígenas. No @reliquia.rum, pretende-se também que “cada pessoa morta seja mais do que um número”.[8] Da mesma forma que o memorial Inumeráveis, a narrativa é construída por um terceiro – nem morto, nem enlutado –, sendo concebida como uma forma de tentar elaborar o luto, sobretudo de vidas frequentemente vistas como não enlutáveis.

Na contracorrente de uma prescrição de um bem lidar com a perda, vemos, com a psicanálise, que o luto tem muito mais a ver com o resto do que fica como marca de uma ausência, como a cicatriz deixada por uma ferida profunda carregada na pele[9], do que com uma resposta clara e unívoca.[10] Na elaboração e na escrita, resta-nos traçar os contornos do que se constitui enquanto buraco, já que não podemos preenchê-lo.

Nesse sentido, damos mais uma vez visibilidade às palavras do idealizador do memorial Inumeráveis e sua equipe de trabalho[11]. O artista fala de uma temporalidade do luto constituída em 3 momentos: o grito, o silêncio e a música. No primeiro, recebemos a notícia avassaladora de que alguém próximo morreu e é difícil acreditar que nada mais será como antes. No segundo, percebemos os detalhes da perda. Mesmo que nos ocupemos ao máximo para evitar entrar em contato com a ausência, o encontro com o silêncio é inevitável. No terceiro, há a transposição para uma vida diferente, não necessariamente melhor, depois de nos aventurarmos pelos contornos porosos da falta.

Essa divisão não implica, de forma alguma, uma normatização ou padronização dos tempos estritamente subjetivos em jogo no luto de cada um. Aliás, uma releitura singular da temporalidade do luto pode ser feita a partir das notas de Chimamanda, colocando novas cartas na mesa. No primeiro momento, a perplexidade: “Não! Não conte para ninguém, porque se a gente contar vira verdade”[12]. No segundo, a reflexão dolorosa e a percepção de que, pouco a pouco, o que conta mais pode começar a ser contado: “‘Você tem uma risada especial quando está com papai’, me diz meu marido [ …]. Reconheço a risada aguda que ele imita e sei que ela tem menos a ver com o que meu pai diz do que com o fato de estar com ele”[13]. No terceiro momento, nada de romantismos. Acrescentamos que a música é algo que só pode existir se direcionada para fora, para um público capaz de escutá-la. No fim, talvez a surpresa com o ato que se materializa: “Estou escrevendo sobre o meu pai no passado, e não consigo acreditar que estou escrevendo sobre o meu pai no passado”[14].

 

REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Notas sobre o luto. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

AIRES, Suely. Mesa-redonda “Luto e subjetivações: clínica, política e ética” (I Congresso Virtual UFBA). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=w0Gfwe4Txqo&feature=youtu.be>. 2020 Acesso em 7 nov. 2021.

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. 5 ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.

BALDINI, Lauro José Siqueira; NASCIMENTO, Elisa Mara do. “Esse verso é um pouquinho de uma vida inteira…”: os inumeráveis e a morte inominável. Linguasagem, São Carlos, v. 37, 2021, p. 67-90.

FREUD, Sigmund [1915/1917]. Luto e Melancolia. In: FREUD, Sigmund. Neurose, psicose, perversão [Obras incompletas 5]. Belo Horizonte: Autêntica, 2019, p. 100-123.

PAVONI, Edson. Fóruns Permanentes: luto, memória e pandemia. 2021. Disponível em: <https://youtu.be/VuhRS4qv-nk>. Acesso em 7 nov. 2021.

NASCIMENTO, Elisa Mara do; RIBEIRO, Karine de Medeiros. “Luto e Linguagem”, live promovida pelo prof. Renan Carrilo, do canal Filosofia Renan. Disponível em: <https://youtu.be/0Bj7fVdR3lU>. Acesso em 7 nov. 2021.

 

NOTAS

[1]  Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/luto/>. Acesso em 7 nov. 2021.

[2] FREUD, [1915/1917] 2019.

[3] A psicanálise é um campo que privilegia a fala livre do paciente deslocada de um fechamento diagnóstico.

[4] Desde o início de 2020, intelectuais e artistas de todo o mundo têm refletido teórica e criticamente sobre a pandemia e sobre o conjunto de problemáticas a ela relacionadas. Cf. a série “pandemia crítica” da Editora N-1: https://www.n-1edicoes.org/textos.

[5] Devido à pandemia, a autora não pôde viajar dos Estados Unidos para a Nigéria, sua terra natal e morada de seus pais, onde participaria dos rituais funerários da cultura igbo. Para aqueles que já se encontravam perto, ficou a impossibilidade de realizar um funeral tal como antes.

[6] Esses enunciados podem ser lidos em Baldini e Nascimento (2020).

[7] PAVONI, 2021.

[8] <https://www.instagram.com/p/B-GBh8KhwJQ/?utm_source=ig_web_copy_link>, publicado em 23 mar. 2020, acesso em 6 out. 2021.

[9] AIRES, 2020.

[10] NASCIMENTO; RIBEIRO, 2021

[11] PAVONI, 2021. Dentre os membros desta vasta equipe, citamos particularmente os nomes de Ana Cláudia Quintana, médica paliativista, e Silvana Aquino, psicóloga paliativista.

[12] ADICHIE, 2021, p. 12.

[13] ADICHIE, 2021, p. 67-68.

[14] ADICHIE, 2021, p. 110.

 

CRÉDITOS DAS IMAGENS

[1] https://www.folhape.com.br/politica/com-placas-de-luto-senadores-fazem-minuto-de-silencio-pelas-500-mil/188061/

[2] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/cpi-da-covid-audiencia-publica-vitimas-covid/

[3] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/07/14/brasileiros-levam-cartazes-e-expressam-sentimentos-na-hora-da-vacinacao.ghtml

[4] https://g1.globo.com/ms/mato-grosso-do-sul/noticia/2021/07/11/emocionada-ao-receber-vacina-jornalista-leva-foto-da-mae-morta-por-covid-misto-de-sentimentos-alegria-e-luto.ghtml

[5] https://inumeraveis.com.br/

[6] https://www.instagram.com/reliquia.rum/

Autor

  • Fernanda Castelano Rodrigues

    Dados da editora: professora do Departamento de Letras da UFSCar desde 2008. Mãe, feminista, defensora dos Direitos Humanos, tem mestrado (2003) e doutorado (2010) em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela Universidade de São Paulo. Tem também especialização em Políticas para a Promoção da Igualdade na América Latina pela FLACSO/CLACSO (2018) e pós-doutorado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Participou da coordenação dos Módulos de Língua Portuguesa do Programa Mais Médicos para o Brasil (2013-2014). Foi diretora do Instituto de Línguas da UFSCar (2016-2017). Pesquisa no campo das Políticas Linguísticas, com especial interesse pelos Direitos Linguísticos de comunidades marginalizadas.

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