Por Júlia Lourenço Costa e Tamires Bonani Conti

 

Linha de frente é um termo que vem sendo muito usado no contexto da pandemia de COVID-19 não só no Brasil, mas no mundo todo, para designar os profissionais que estão mais à frente no combate ao novo coronavírus. Em outras palavras, a linha de frente é formada pelas pessoas que estão em contato mais direto, mais constante e mais intenso com o vírus e, portanto, têm maior risco de infecção devido à própria função que desempenham na sociedade.

O termo é muito usado pela sociedade em geral para designar os “profissionais da área de saúde e funcionários de setores essenciais”[1], os “médicos, nutricionistas, enfermeiros – de hospitais públicos e privados”[2], sendo muito associado a palavras como combate, enfrentamento, luta, heroísmo e batalha, todas de forte engajamento militar.

De acordo com o médico e professor Gustavo Nunes de Oliveira (DM-UFSCar), a origem da saúde pública brasileira, a mais citada na mídia como pertencente à linha de frente, historicamente, trava forte diálogo com o vocabulário militarista, tomando emprestadas desse campo muitas expressões, como “hospital de campanha”; “higienismo campanhista” e “polícia médica e sanitária”, expressões que surgem no período da Revolta da Vacina e da higienização dos portos no Brasil (no início do século XX).

Nesse sentido, linha de frente é também um termo que deriva das forças armadas e é definido, nesse contexto, como “uma medida de controle de espaço de combate que designa as forças amigas ou inimigas mais à frente, presentes na zona de combate durante um conflito armado ou guerra; seja uma infantaria regular ou de reconhecimento”[3].

A ação de combate à COVID-19 está, portanto, muito permeada pela ação militar de planejamento estratégico e controle de informação. As finalidades desse paralelismo entre a esfera militar e a esfera médica, segundo Oliveira, “coincidem com a tradição colonial brasileira e de um discurso de saúde de autoridade para as populações que não têm autonomia, o que vem transitando para a ideia de um profissional de saúde, sobretudo na medicina, de um profissional ‘salvador’, calcado na exaltação da complexa tecnicidade”.

Assim, apesar de linha de frente ter ocorrência em diversos países, é importante salientar que o uso desse tipo de vocabulário num país como o Brasil é mais significativo porque ativa também os sentidos de uma ditadura militar ainda recente (1964-1985). Destaca-se ainda o fato de o atual presidente Jair Bolsonaro ser ex-militar, assim como o atual ministro da saúde, General Eduardo Pazuello, e de haver um número expressivo de outros cargos do governo federal sendo ocupados por militares da ativa ou da reserva (são mais de 6 mil[4]). Por isso, esse estreito paralelismo entre os discursos médico e militar pode soar de modo peculiar no Brasil contemporâneo.

Com base em uma percepção espacial, o termo linha de frente demarca a escala de proximidade entre dois grupos: o “aliado” e o “inimigo”. A linha de frente é, então, o grau máximo dessa aproximação entre eles: aqueles que estão na linha de frente de uma disputa, de um combate, de um enfrentamento, são os que estabelecem o contato mais próximo com o inimigo. Desde março de 2020, quando foi declarada a pandemia no mundo pela Organização Mundial da Saúde (OMS)  (isto é, o fato de que havia – e ainda há – um vírus sendo amplamente disseminado sobre o qual se tinha ainda pouco conhecimento científico e que até hoje não há vacina amplamente comprovada[5]), a analogia do enfrentamento contra o coronavírus se estabeleceu de maneira imediata e o vírus passou a ser o inimigo a ser combatido e a linha de frente, os soldados desta guerra.

Quando se fala em linha de frente, no contexto da pandemia, se exaltam os profissionais de saúde, sobretudo os médicos que trabalham nas UTIs, urgências e emergências dos hospitais, comumente retratados na mídia com imagens nas quais aparecem paramentados com “gorros; óculos de proteção ou protetor facial; máscara (cirúrgica ou máscara de proteção respiratória, conforme procedimento); avental impermeável de mangas longas e luvas de procedimento[6]“, fato que nem ao menos condiz com a realidade brasileira nos hospitais[7]. Porém, nesse cenário, não só esse profissionais estão mais próximos do “vírus inimigo”: há também vários outros setores essenciais como, por exemplo, outros funcionários de um hospital que trabalham no transporte de pacientes, no setor de limpeza, na administração, na segurança, na lavanderia etc. Estão também na linha de frente os trabalhadores do serviço de coleta de lixo (uma reportagem publicada no portal R7[8] teve o objetivo de homenageá-los inclusive), os de mercados e farmácias, dentre outros, que são invisibilizados e colocados em segundo plano nesse combate, pois raramente são citados na grande mídia como pertencentes à linha de frente.

É necessário, ainda, ressaltar que os profissionais da Ciência e Tecnologia, que estão trabalhando intensamente naquela que é a forma mais eficaz do combate a esse “inimigo”, ou seja, em pesquisas para o desenvolvimento de uma vacina contra o vírus, também não são recorrentemente citados na mídia como pertencentes à linha de frente. Este fato comprova que a linha de frente contra a COVID-19 é definida por uma percepção espacial do contato mais direto com o risco da contaminação, a despeito do trabalho essencial de cientistas que estão em seus laboratórios em outro tipo enfrentamento constante.

Além disso, os profissionais da Comunicação exercem também um papel fundamental na difusão das informações cientificamente embasadas sobre a COVID-19, evitando a propagação de notícias falsas e, consequentemente, contribuindo para a preservação da saúde e do bem-estar da população. A linha de frente, afinal, é diversificada e não poderia ser definida apenas por um grupo tão específico de profissionais.

Num primeiro momento da pandemia, a representação desses grupos que pertenciam à linha de frente e foi bastante enfatizada. Inclusive a população, em diversos países e também no Brasil, demonstrou sua gratidão a esses profissionais de variadas formas: aplaudindo seu trabalho, expondo tecidos nas janelas de suas casas com mensagens de apoio ou postando hashtags de reconhecimento nas redes sociais (#AbraçonaSaúde[9], por exemplo).

A necessidade do isolamento social impôs a demarcação de espaços nos quais se enfrentava com mais intensidade o “inimigo” – o vírus –, como o da casa, onde a população deveria permanecer em resguardo e protegida. Lembremos a campanha inicial #fiqueemcasa, que também estabelece, em certa medida, a metáfora da guerra: a casa sendo o lugar seguro e os hospitais a primeira trincheira da luta contra o novo coronavírus.

Num segundo momento da pandemia, contudo, o termo linha de frente passou também a ser compreendido como uma certa autorização para circular no espaço social comum ou, em outras palavras, como uma autorização moral para sair de casa. Tal fato, no contexto político brasileiro no qual a magnitude da pandemia é minimizada, acaba por estimular a abertura de outros serviços visto como não essenciais: com a finalidade de alavancar a economia do país, shoppings, bares, restaurantes e academias, por exemplo, voltam a funcionar, pois são considerados como essenciais para determinado setor da população.

Finalmente, a linha de frente é determinada pelo caráter daquele serviço que é considerado imprescindível em determinado momento do enfrentamento. É possível observar, com o desenrolar da pandemia, que essa linha que separava os que estão mais à frente, portanto, mais essenciais no combate em questão, e os que estavam na retaguarda, acaba por se tornar mais tênue ou pode, até mesmo, desaparecer.

Entregadores de aplicativos, babás, cozinheiras, empregadas domésticas, personal trainers e garçons, por exemplo, em nome da manutenção não mais da vida, mas da essencialidade da saúde mental de alguns, por um lado, e da economia, por outro, passam então a formar a nova linha de frente, que toma novos contornos conforme a classe social. Assim, as pessoas mais privilegiadas permanecem em casa, enquanto outros se esbarram na trincheira do transporte público todos os dias para ir trabalhar.

Já num terceiro momento da pandemia, é possível afirmar a ineficácia do Brasil em gerenciar e garantir a estabilidade dos setores ditos essenciais, aqueles da chamada linha de frente. O título de uma reportagem publicada em julho de 2020 – “‘Antes, aplaudiam’: os profissionais da linha de frente da COVID-19 que enfrentam atraso de salário”[10] – concretiza não apenas a falta de planejamento por parte dos entes administrativos, mas também a desvalorização desses profissionais num prazo temporal bastante curto.

Segundo Cláudia Izique, “a confiança nos governantes é fundamental para limitar a propagação de uma epidemia”[11], fato que não ocorre no Brasil, que tem continuamente se destacado pela sua péssima gestão da crise sanitária causada pelo vírus SARS-CoV-2, como destacam, diariamente, diversos jornais no país e no exterior.

Vivemos no Brasil atualmente uma forte tensão política, no interior da qual as demarcações da chamada linha de frente cada vez se esgarçam mais. As trincheiras que delimitam o “aliado” e o “inimigo”, base para a compreensão do termo linha de frente, acabam se diluindo na compreensão que os próprios sujeitos têm, com base em seu alinhamento político e ideológico e em sua compreensão dos fatos do mundo. Os governos, juntamente com os cidadãos, são os que, afinal, determinam quais são as funções mais essenciais e, portanto, definem quem deve estar no contato mais direto com o vírus em nome da preservação da saúde da população.

A linha de frente, afinal, só pode ter uma existência eficaz quando há uma separação, por um lado, entre os espaços mais engajados no combate e os espaços mais seguros e, por outro lado, entre os serviços essenciais e os que podem permanecer sem funcionar por um tempo. Se toda a população ocupa os espaços de alto risco de contaminação em meio a uma pandemia, a linha de frente perde tanto sua eficácia quanto seu motivo de existência, pois não é mais somente ela a responsável por enfrentar primeira e diretamente o inimigo.

Nesse sentido, a linha de frente no Brasil não é uma apenas, mas essencialmente duas: há uma linha de frente mais sanitária, de combate ao vírus na área de saúde, e outra linha de frente mais política, na qual os cidadãos lutam diariamente tanto por ações de contenção do espalhamento do vírus e do contágio quanto de manutenção digna da sua condição social e humana durante a pandemia. Lembremos que o Brasil viveu momentos conturbados no  Ministério da Saúde, tendo ficado inclusive vários meses sem Ministro, e o auxílio emergencial do governo federal, quando aprovado, não chega a cobrir as despesas básicas das famílias brasileiras. No entanto, para poder funcionar num país como o Brasil, a linha de frente deveria ser plural: as linhas de frente. Assim, é fundamental insistir em que a reflexão sobre a linha de frente deve, portanto, considerar os diversos fatores que participam de sua compreensão.

 

Notas

[1] Disponível em: https://informasus.ufscar.br/como-estamos-usando-o-nosso-tempo-e-o-tempo-das-criancas-durante-o-distanciamento-social/

[2] Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/a-pandemia-chamou-a-atencao-para-o-sentido-do-olfato/

[3] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Linha_de_frente

[4] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/17/governo-bolsonaro-tem-6157-militares-em-cargos-civis-diz-tcu.ghtml>

[5] Texto redigido em 20/08/2020.

[6] Disponível em: https://coronavirus.saude.gov.br/saude-e-seguranca-do-trabalhador-epi

[7] Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/04/11/profissionais-da-saude-reclamam-da-falta-de-equipamentos-de-protecao-individual.ghtml

[8] Disponível em: https://estudio.r7.com/herois-na-linha-de-frente-10082020

[9] Disponível em: https://www.estadao.com.br/infograficos/brasil,de-um-abraco-na-saude-do-brasil-contra-o-coronavirus,1086559

[10] Disponível em: https://noticias.r7.com/saude/antes-aplaudiam-os-profissionais-da-linha-de-frente-da-covid-19-que-enfrentam-atraso-de-salario-30072020

[11] Disponível em: https://agencia.fapesp.br/a-resposta-dos-governos-a-covid-19-podera-deixar-cicatrizes-politicas-afirmam-pesquisadores/33550/

 

Crédito da Imagem: United Nations COVID-19 Response em Unsplash

Autor

  • Fernanda Castelano Rodrigues

    Dados da editora: professora do Departamento de Letras da UFSCar desde 2008. Mãe, feminista, defensora dos Direitos Humanos, tem mestrado (2003) e doutorado (2010) em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela Universidade de São Paulo. Tem também especialização em Políticas para a Promoção da Igualdade na América Latina pela FLACSO/CLACSO (2018) e pós-doutorado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Participou da coordenação dos Módulos de Língua Portuguesa do Programa Mais Médicos para o Brasil (2013-2014). Foi diretora do Instituto de Línguas da UFSCar (2016-2017). Pesquisa no campo das Políticas Linguísticas, com especial interesse pelos Direitos Linguísticos de comunidades marginalizadas.

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