Autoria: Jô Nunes

Ser mãe de uma pessoa com doença rara é matar um leão por dia. A gente reinventa a roda.

Jéssica foi uma pessoa maravilhosa, alegre e lutadora, que veio a este mundo com a missão de me ensinar a ser guerreira e de me ensinar a maior das lições: respeitar as pessoas dentro de todos seus limites não importando qual seja sua condição.

A Jéssica nasceu e logo eu vi que era uma pessoa especial que eu jamais imaginei que um dia teria. Foi uma gravidez muito desejada, quando descobri que era uma menina vibrei de alegria, era meu sonho se realizando, fiquei nove meses sonhando e idealizando como ela seria.

No dia 07/10/1990 ela veio ao mundo. Era muito pequena e os médicos até acharam que ela era prematura. Mas logo foi descartada esta possibilidade, com 2650gr, era considerada tamanho normal. No dia seguinte, quando veio para mamar, notei que a minha filha era diferente, ela tinha muita dificuldade para mamar e gemia muito. O pediatra me tranquilizou dizendo que ela era normal.

Chegando em casa com o meu bebê tão esperado, ela chorava sem parar, gemia muito e se contorcia, parecia que estava com dor. Quantas vezes, desesperada no meio da noite, eu procurava o pronto-socorro e os pediatras falavam que ela não tinha nada, as vezes receitavam remédio para cólicas e nos mandava de volta para casa.

Eu a achava tão diferente dos meus dois filhos mais velhos. Jéssica tinha um sono conturbado, tinha hérnia umbilical, pneumonias constantes. Os médicos consultados diziam que tudo isso era normal.

Devido às pneumonias, eu era constantemente cobrada quanto aos cuidados de minha filha. Aos 4 meses ela já estava com sintomas da quarta pneumonia, então resolvi procurar uma pediatra que eu confiava muito. Eu morava no extremo sul de São Paulo e soube que essa pediatra estava atendendo na zona norte. Jamais vou me esquecer desse dia, sai de madrugada chovia muito tomei três ônibus e quando cheguei ao hospital, o guarda na entrada falou que eu não poderia falar com a medica, que era para eu fazer uma ficha e esperar porque só teria atendimento na troca de plantão. Acabei entrando num descuido dele e logo dei de cara com a médica. Chorando entreguei a minha filha e implorei ajuda. Entramos no consultório e ela colocou a Jessica num divã e minha filha começou a ter uma parada cardíaca. Logo virou uma correria e me colocaram para fora do consultório. Neste dia iniciou para nós outra realidade: ser mãe de UTI. Fomos transferidas para um instituto do coração (INCOR/SP) e foi diagnosticada cardiopatia congênita (estenose aórtica supravalvar).

Mesmo assim, eu ainda achava que ela ainda tinha mais coisas. O seu desenvolvimento sempre foi muito lento, demorou para sentar, andar. Sempre na visita do pediatra eu indagava e todos diziam que minha filha era normal e eu que procurava doença nela. Então, passei a guardar as dificuldades só para mim. Aos 14 meses ela teve meningite bacteriana e deu uma regredida, ficou mais lenta. Os médicos passaram a dizer que isso era uma sequela da meningite, que tinha gerado uma hiperatividade. E eu sempre afirmando que antes da doença meningite ela já era diferente.

Na escola foi um transtorno. No segundo dia de aula já fui chamada. Alegavam que não estavam preparados para lidar com ela. Jéssica passou por várias escolas tudo em vão. Quando estava com sete anos, por falta de opção, eu acabei tendo que colocá-la numa classe especial. Na mesma época, certo dia estava esperando no corredor do hospital para uma consulta e passou um médico americano que olhou para Jéssica e falou que ela tinha Síndrome de Williams. Saí correndo, chamei o médico dela e este, conversando com o colega americano, acabou encaminhando a Jéssica para a genética.

Foi árduo consegui um geneticista na rede pública. Eram anos de espera por uma consulta. Tive que ser perseverante. Eu ia ao serviço de genética todos os dias de atendimento até que um dia uma geneticista a viu na recepção e veio me perguntar se ela era atendida pela a genética. Aí contei a minha jornada em busca de diagnóstico e ela abriu uma vaga para atender a minha filha. No atendimento foi confirmada a suspeita de Síndrome de Williams (SW). Fiquei em pânico, saí procurando o máximo de informação e quis ter contato com outros pais para trocar experiência. Todos que acabei conhecendo estavam completamente perdidos, sem esclarecimento sobre a SW. Junto com os profissionais, fomos juntando as famílias e montamos um grupo. A Dra. Sofia Miura fez a primeira tese brasileira sobre a SW, assim conseguimos os exames de diagnóstico que comprovaram a SW.

Paralelo a isso, o desenvolvimento da Jéssica era muito lento na sala especial, como eram pessoas com várias deficiências juntas, ela acabava seguindo as outras crianças. No 3º ano de classe especial minha filha teve uma educadora (Ana Petronilia) muito consciente, com muito amor e dedicação. Engraçado que foi a primeira professora que me pediu ajuda, que declarou seus medos e dificuldades em relação à minha filha. Começamos a trabalhar juntas e o que era impossível se tornou possível: no final do ano a Jéssica estava alfabetizada, pronta para uma classe comum.

Vocês pensam que é um final feliz? Estão enganados!

Foi aí que começaram todos os meus dramas. Minha filha foi incluída numa classe com 45 alunos, uma professora recém-formada e mais 2 estudantes hiperativos na sala. Ela ficava jogada no fundo da sala de aula sem atividade. Quando apanhava de outras crianças ótimo, mas quando batia o mundo caia em sua cabeça. Eu, desesperada, tentava de todas as formas ajudar a escola a superar as dificuldades.

Eles faziam de tudo para mostrar que a inclusão da Jéssica não dava certo e eu sofria porque sabia que eles nem ao menos tinham tentado. Houve muitas desavenças com a escola e um certo dia a coordenadora pedagógica me falou que eu enchia o saco, que ela tinha 18 anos de pedagogia e que eu queria ensinar o serviço dela. Saí dali fui diretamente ao Foro da Vara do Menor. Chegando lá, depois de muita insistência, consegui falar com o juiz. Falei para ele que queria tirar a minha filha da escola e que ela jamais iria pisar os pés dentro de uma escola. O juiz, indignado, quis saber o porquê e eu contei toda a minha luta em relação à minha filha. O juiz, muito sensibilizado com a minha situação, interviu e, junto com todos os profissionais da saúde que acompanhavam a Jéssica, foi à escola. Então, juntos fomos desenvolvendo uma estrutura para escola trabalhar com a minha filha.

Fotografia 1. Jô Nunes e sua filha Jéssica (arquivo pessoal).

Infelizmente Jéssica faleceu em 2010 aos 19 anos de complicação pós transplante cardíaco. Foi um golpe duro. A gente se preocupa com nossos filhos se a gente faltar, mas nunca pensamos no contrário. Mas hoje respiro. Missão cumprida! Porque fiz pela a minha filha tudo que estava ao meu alcance e ela foi muito feliz. Para quem teve um prognóstico negativo com muitos empecilhos, Jessica concluiu o ensino fundamental, estava alfabetizada, falava fluentemente inglês, francês, libras e espanhol. Era totalmente independente, namorava, ia para as baladas, trabalhava de recepcionista no hotel, era palestrante e muito mais. Era muito feliz e fez todos que a conheceram muito felizes (Fotografia 1).

E o grupo de pais foi aumentando e juntos tivemos muitas conquistas. Mediante a isso, resolvemos, no dia 09/02/02, criar a 1ºASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA SÍNDROME DE WILLIAMS. A ABSW já conquistou muitas coisas (Figura 1). Hoje somos mais de 4.000 familiares em todo Brasil. Mais de 1.000 em outros países. Somos o único site sobre Síndrome de Williams na língua portuguesa. Temos quatro associações regionais: Associação Paraense de Síndrome de Williams e Doenças Raras; Associação Goiana de Síndrome de Williams; Associação de Síndrome de Williams do Rio de Janeiro e Associação Paranaense de Síndrome de Williams. Temos ainda vários grupos de pessoas com SW e familiares, reunidos a partir das suas cidades de origem (por exemplo: grupo de Sorocaba e região, grupo de Ribeirão Preto e região, etc.).

 

Design por Ana Paula de Lima

 

Figura 1. Logo da Associação Brasileira da Síndrome de Williams (http://swbrasil.org.br/)

Cada Associação ou grupo regional da ABSW fecha parceria com Universidades para o atendimento das suas necessidades, tais como: investigação das crianças suspeitas de terem SW; encaminhamentos para os tratamentos ambulatoriais necessários para SW; apoio as pesquisas para melhorar a qualidade de vida das pessoas com SW; visitas nas escolas onde estudam nossas crianças, orientando a melhor maneira de educar as nossas crianças; parceria com Conselhos da Pessoas com Deficiência no nível Municipal, Estadual e Federal.

Eu luto para alcançar o meu ideal, porque a cada família nova que atendemos, vejo a minha história se repetir (Fotografia 2). As famílias vêm desesperadas e é muito bom quando elas descobrem que não estão sozinhas. Quero que, quando nasça uma criança com SW, ela já seja diagnosticada e encaminhada para ser tratada e estimulada. Temos que unir forças para montar uma estrutura para que estas pessoas possam melhorar a qualidade de vida e assim serem incluídas na sociedade com dignidade e respeito. Embora tenham a mesma síndrome, as pessoas são diferentes. Temos que fazer com que o impossível se torne possível. Por favor, nos ajude a divulgar a Síndrome de Williams para podermos identificar e orientar os familiares. Quanto mais cedo o diagnóstico, melhor será o desenvolvimento da pessoa com Síndrome de Williams.

Fotografia 2. Jô Nunes em um momento de divulgação sobre a Síndrome de Williams (arquivo pessoal).

Conheça uma pessoa com Síndrome de Williams que você jamais a esquecerá.

 

SERVIÇO

Este texto foi produzido pela Sra. Joelina Nunes (Jô Nunes), fundadora da Associação Brasileira da Síndrome de Williams e autora do livro “Mãe Coragem – Convivendo com a Síndrome de Williams”.

Grupo Cuidado sem Limites:
Crispim Antonio Campos
Débora Gusmão Melo
Jacqueline Denubila Costa
Júlia Andreza Gorla
Larissa Campagna Martini
Mariana de Almeida Prado Fagá
Vera Regina Lorenz

Veja também:

Autor

  • Débora Gusmão Melo

    É graduada em Medicina pela Universidade Federal de Sergipe (1991 a 1997), fez residência (1997 a 2000) em Genética Médica no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), mestrado (2000 a 2002) e doutorado (2002 a 2006) em Ciências Biológicas (Genética) no Departamento de Genética da FMRP-USP. Desde 2006 é professora na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em regime de dedicação exclusiva, tendo participado da fundação do Departamento de Medicina da UFSCar. Em 2011 fez estágio pós-doutoral no UnIGENe, Instituto de Biologia Molecular e Celular, Universidade do Porto, Portugal. Atualmente é professora associada no Departamento de Medicina da UFSCar e orientadora permanente no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFSCar, que possui os cursos de mestrado e doutorado em Ciências da Saúde. Atua nas áreas de genética clínica, genética comunitária e aconselhamento genético. Desenvolve pesquisas com métodos qualitativos e/ou quantitativos sobre os seguintes temas: diagnóstico clínico e molecular de doenças genéticas, defeitos congênitos e deficiência intelectual, aconselhamento genético e saúde pública (estudos epidemiológicos, de gestão e de educação em genética médica). Lattes: http://lattes.cnpq.br/2587800992546559

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