Os entregadores de aplicativo – motoboys e bikers – marcaram greve nacional para dia 1 de julho de 2020. A  categoria reivindica melhores condições de trabalho em meio a pandemia do novo coronavírus: que empresas arquem com os custos de equipamentos de proteção individual (EPIs), que ofereçam licença remunerada para trabalhadores(as) que foram contaminados(as) durante a pandemia e que se aumente o valor mínimo por entrega e do pagamento da corrida.

Se, por um lado, a necessidade de proteção de profissionais de Saúde ganhou notoriedade nacional durante a pandemia, esta mesma atenção não foi direcionada aos profissionais que trabalham com entregas delivery. O trabalho de entregadores é potencial fonte de exposição ao vírus (FILHO et al., 2020), e para além dos riscos de contaminação durante a pandemia, os entregadores apresentam outras demandas que também requerem repercussão e (re)conhecimento da sociedade, com intervenção das autoridades públicas.

O trabalho destes(as) profissionais representa uma nova forma de organização, em que as relações de trabalho são mediadas por plataformas digitais – fenômeno conhecido como “uberização” em referência ao modelo de trabalho popularizado pelo aplicativo UberⓇ (da Uber Technologies Incorporation). Nesse modelo, trabalhadores(as) não mais se identificam como empregados(as), mas como “empreendedores(as)” –  alguns aplicativos chegam a exigir o registro de Microempreendedor Individual (MEI) –, realizando um “trabalho sem patrão”, com autonomia para decidir sobre sua dedicação e horários. No entanto, o controle deste(a) trabalhador(a) se dá por algoritmos que fazem o gerenciamento, a supervisão e a vigilância do trabalho, e que são programados para fins lucrativos com aparência de neutralidade.

Um(a) entregador(a) de aplicativo se disponibiliza ao trabalho, mas não consegue negociar o valor da entrega, nem planejar a remuneração ao final do dia ou a distribuição do trabalho, sendo exposto(a) a uma alta produtividade e a longas jornadas estimuladas. Estes(as) profissionais estão longe de ter as mesmas garantias, segurança ou direitos associados ao trabalho, sendo os(as) único(as) responsáveis por todos os riscos e custos da atividade, incluindo a manutenção do veículo, do celular e dos equipamentos que utiliza. 

O trabalho precarizado é caracterizado pelo esforço físico (peso das caixas e, no caso dos bikers, força física necessária para pedalar), pela baixa remuneração, por jornadas intensas com horários flexíveis, sem pagamento de hora extra, e pela ruptura das relações coletivas – dado o incentivo de competição e, muitas vezes, a ausência de folga semanal. O acesso ao trabalho, que se dá por meio da adesão ao aplicativo, é sem garantias de treinamento efetivo. Da mesma forma que não são contratados(as), não são demitidos(as), mas podem ser desligados(as) da plataforma por uma gama de motivos – os quais nem sempre são pré-estabelecidos (ABÍLIO, 2019). Essa instabilidade afeta não apenas o(a) profissional, mas também seus núcleos familiares e suas relações sociais, associando-se ao aumento da pobreza, da desigualdade, do desemprego e do rompimento de vínculos comunitários.

Para o indivíduo entregador, os aplicativos podem ser o meio de livrar-se da exploração de empresas terceirizadas  –  que, em geral, abocanham 40% do valor da entrega realizada – e tornar-se o tal “trabalhador sem patrão” com possibilidade de rendimentos maiores. Entretanto, trabalhar por conta própria requer abrir mão de direitos do trabalho formal e enfrentar a relação permanente entre concorrência e rendimentos: quanto mais trabalhadores(as) aderirem aos aplicativos, menor será a possibilidade de ganho e, provavelmente, maior será o tempo de trabalho. Já as empresas de aplicativos “[…] complementam-se com as terceirizações ao mesmo tempo que concorrem com elas. Complementam-se na medida em que é mais um passo na transferência de custos e responsabilidades sobre a produção. Mas é também uma forma de eliminação de empresas terceirizadas que não conseguirão bancar a concorrência com as empresas-aplicativo” (ABÍLIO, 2017).

De acordo com pesquisa realizada por Moraes, Oliveira e Accorsi (2019), as possibilidades de tornar-se empreendedor de si e de ter autonomia são os principais motivos que fazem com que entregadores(as) aceitem as condições no trabalho das empresas de aplicativos. Mas esse empreendedorismo não se efetiva objetivamente na medida que não envolve a assunção de altos riscos, a capacidade distinta de decisão, a resolução de problemas complexos e o desenvolvimento de diversas inteligências. Esses “empreendedores de si” são levados a trabalhar muitas horas na semana, e a empresa não garante total liberdade para definir a jornada de trabalho, não cria vínculo trabalhista e os rendimentos auferidos na atividade são inferiores ao de um emprego tradicional. Somam-se a estas condições consumidores em busca de baixo preço e trabalhadores em situação de desespero (MORAES; OLIVEIRA; ACCORSI, 2019).

Para piorar, os entregadores de aplicativos relatam estar trabalhando mais durante a pandemia, mas que tiveram uma redução significativa do salário nesse período. Em uma pesquisa feita pela Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir Trabalho), 60,3% dos sujeitos entrevistados relataram queda da remuneração durante a pandemia, e apenas 10,3% disseram que estão ganhando mais dinheiro durante a quarentena. Os pesquisadores dizem ser “possível aventar que as empresas estão promovendo uma redução do valor da hora de trabalho dos entregadores em plena pandemia e sobremajorando seu ganho às custas do trabalhador”. As empresas negam isso. 

Por estarem nas ruas em contato frequente com pessoas e objetos que podem estar contaminados, estes(as) profissionais estão expostos(as) ao risco da infecção pelo novo coronavírus; há recomendações para que as empresas façam orientações de segurança para os(as) trabalhadores(as) e forneçam insumos e materiais de segurança. No entanto, a realidade experimentada por eles(as) tem sido outra. 

Contextualizada a precarização do trabalho deste público e suas implicações subjetivas e objetivas – as quais se tornaram ainda mais críticas durante a pandemia –, entregadores(as) começaram a se organizar como um movimento de trabalhadores e reivindicar melhorias nas suas condições de trabalho. Em março, o motoboy Paulo Roberto da Silva Lima, liderança da categoria, criou um abaixo-assinado online para pressionar as empresas de aplicativos de delivery e teve uma grande adesão; com o passar do tempo, o movimento foi se fortalecendo, até que deflagrassem uma greve, marcada para quarta, 01/07/2020. O movimento propõe ao público consumidor um dia sem usar aplicativos de entrega, e a ideia é pressionar as empresas para que abram diálogo com a categoria e atendam suas reivindicações. 

No movimento #BrequedosApps, que pode ser acompanhado pelas redes sociais, a categoria exige aumento do pagamento das corridas por quilômetro, fim dos bloqueios e desligamentos indevidos, além de seguro contra roubo, acidente, seguro de vida e um auxílio pandemia, que incluiria  mais máscaras, luvas, álcool em gel, entre outros insumos. Também se exige uma licença do trabalho caso algum(a) entregador(a) contraia o vírus em serviço.

Diante dos problemas colocados é importante que, para além do cenário da pandemia, todas e todos os trabalhadores e a sociedade civil reconheçam a necessidade de melhores condições laborais e de garantia de direitos trabalhistas/previdenciários desta categoria. O atendimento às reivindicações neste momento ajuda a proteger não apenas entregadores(as) de delivery, mas também pessoas que utilizam as entregas. Mas é necessário avançar na proteção destes sujeitos, que estão submetidos a condições de extrema precariedade e de exploração do trabalho.  

Saiba mais:

Referências

  1. ABÍLIO, L. C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas. v. 18, n. 13, 2019. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5027/psicoperspectivas-vol18-issue3-fulltext-1674. Acesso em: 30 jun. 2020.
  2. ABÍLIO, L. C. Uberização do trabalho: subsunção real da viração. CESIT [via Passa Palavra], 19 fev. 2017. Disponível em: http://www.cesit.net.br/uberizacao-do-trabalho-subsuncao-real-da-viracao/. Acesso em: 30 jun. 2020.
  3. MOURA, J. Motoboys organizam boicote a aplicativos de entrega em 1° de Julho. Folha de S. Paulo, 14 jun. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/06/motoboys-organizam-boicote-a-aplicativos-de-entrega-em-1o-de-julho.shtml. Acesso em: 21 jun. 2020.
  4. FILHO, J. M. J. et al. A saúde do trabalhador e o enfrentamento da COVID-19. Rev. bras. saúde ocup., São Paulo, v. 45, n. 14, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2317-6369ED0000120. Acesso em: 21 jun. 2020.
  5. MORAES, R. B. S.; OLIVEIRA, M. A. G.; ACCORSI, A. Uberização do trabalho: a percepção dos motoristas de transporte particular por aplicativo. Revista Brasileira de Estudos Organizacionais, v. 6, n. 3, p. 647- 681, dez. 2019. Disponível em: https://rbeo.emnuvens.com.br/rbeo/article/view/216. Acesso em: 21 jun. 2020.
  6. SOUZA, F.; MACHADO, L. Coronavírus: entregadores de aplicativo trabalham mais e ganham menos na pandemia, diz pesquisa. BBC News Brasil, 07 maio 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52564246. Acesso em: 30 jun. 2020.
  7. PLATAFORMA RENAST ONLINE. Nota Técnica Conjunta SMS/DVIS/CEREST/VISA N°010/2020. Dispõe sobre os aspectos sanitários relacionados aos serviços de alimentação cuja disponibilização ao consumidor se dá por meio de delivery ou retirada de pedidos no estabelecimento. Disponível em: http://renastonline.ensp.fiocruz.br/recursos/aspectos-sanitarios-relacionados-aos-servicos-alimentacao-cuja-disponibilizacao-consumidor. Acesso em: 21 jun. 2020.
  8. PLATAFORMA RENAST ONLINE. Nota técnica 02/DVISAT/2020. Recomendações às empresas e aos trabalhadores que utilizam os serviços de entrega de mercadorias diante da Pandemia do coronavírus (COVID-19). Disponível em: http://renastonline.ensp.fiocruz.br/sites/default/files/arquivos/recursos/nota_tecnica_02_dvsat_motofretista_v3.pdf. Acesso em: 21 jun. 2020.
  9. CHANGE.ORG. Pandemia expõe situação de desamparo dos entregadores de delivery. Catraca Livre, Cidadania, 08 abr. 2020. Disponível em: https://catracalivre.com.br/cidadania/pandemia-expoe-situacao-de-desamparo-dos-entregadores-de-delivery/. Acesso em: 30 jun. 2020.
  10. ENTREGADORES DE DELIVERY marcam greve geral para 1º de julho. Catraca Livre, 19 jun. 2020. Disponível em: https://catracalivre.com.br/cidadania/entregadores-de-delivery-marcam-greve-geral-para-1o-de-julho/. Acesso em: 30 jun. 2020.

 

Autoria de
Mariana de Almeida Prado Fagá
Cristiane Shinohara Moriguchi de Castro
Vera Regina Lorenz
Eduardo Pinto e Silva
Vivian Aline Mininel
Juliano Ferreira Arcuri
Fernanda Maria de Miranda

Créditos da imagem: Roberto Parizotti no Fotos Públicas

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Autor

  • Mariana de Almeida Prado Fagá

    Médica de família e comunidade, professora do Departamento de medicina da UFSCar, interesse em temas relacionados com atenção primária à saúde (APS), saúde indígena, trabalho e inclusão, saúde mental na atenção primária.

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