O adoecimento sempre é uma experiência existencialmente mobilizadora. Seja pelos significados socioculturais, seja pelas percepções que desencadeia nas pessoas, adoecer provoca reflexões, ou até mesmo ressignificações, relacionadas à vida1,2 .

Em se tratando de doenças de transmissão interpessoal, especialmente aquelas que podem resultar em degeneração ou morte, o conflito social e pessoal respectivamente derivado podem estigmatizar e, assim, intensificar o sofrimento, principalmente quando o estigma se traduz em segregação e subtração existencial do doente2. Além disso, o preconceito poderá induzir sua vítima a ocultar defensivamente sua condição, favorecendo a transmissibilidade da doença e prejudicando o controle epidemiológico³.

Essa contingência torna importante o acolhimento e o apoio a quem adoece, para que a angústia social e pessoal encontre resistência ao interesse do bem-estar de todos. É quando a empatia e a solidariedade, traduzidos em cuidado, definem-se como a ética humanizadora.

Com a Covid-19 não é diferente: angústia, medo, estigma, subtração e segregação também são experimentados por quem contrai o SARS-CoV-2, especialmente quando materializado por um exame cujo diagnóstico deu positivo ou, pior ainda, quando há a manifestação de sintomas4. Uma das causas do estigma é a falta de informação.2,3,4 Portanto, conhecer os modos e os riscos de transmissão da Covid-19 pode ajudar no autocuidado e no cuidado com o outro, de modo que o sofrimento não seja agravado pelo estigma e ainda possa ser aliviado pela empatia solidária. A aplicação desse conhecimento também ajuda a reduzir a transmissão da doença.

A esse respeito, sabe-se que uma pessoa com sintomas da Covid-19 ou com um exame RT-PCR positivo para SARS-CoV-2, e que se cura sem precisar ser hospitalizada, em termos práticos, é potencialmente transmissora do vírus por até 14 dias após o início dos sintomas ou após o resultado do exame. Na terceira semana ou um pouco mais, é possível que esta pessoa esteja com elevados níveis de anticorpos e já tenha eliminado o vírus do organismo, portanto, já com menor ou nenhum risco de transmissão e, provavelmente, com nenhum risco de adoecer novamente. Por outro lado, qualquer pessoa pode ser transmissora do SARS-CoV-2, principalmente aquelas que nunca tiveram diagnóstico da Covid-195,6,7,8,9,10,11 .

Nesse sentido, para cuidarmos uns dos outros de maneira eticamente humana e, ao mesmo tempo, agir de modo epidemiologicamente correto contra a Covid-19 enquanto a epidemia não estiver controlada, recomenda-se:

  1. Não visitar quem nunca teve diagnóstico de infecção pelo SARS-CoV-2, pois é imprevisível a condição de transmissor, tanto do visitante quanto do morador. Este é o caso em que os dois correm o risco de um infectar o outro;
  2. Não visitar quem estiver com a Covid-19, porque, neste caso, a pessoa precisa estar em isolamento para não transmitir o vírus;
  3. Não visitar pessoas com exame RT-PCR positivo para SARS-CoV-2, pois, mesmo que não apresentem sintomas, elas também precisam estar em isolamento para não transmitirem o vírus;
  4. Não visitar quem teve contato com outras pessoas doentes da Covid-19 ou que deram positivo para o exame RT-PCR nos últimos 14 dias, já que, mesmo sem sintomas, essas pessoas precisam estar em quarentena para evitar transmitir o vírus, uma vez que podem ter sido contaminadas por meio desse contato;
  5. Em relação às pessoas acima, pode-se manifestar diariamente todo apoio, carinho e consideração possíveis por telefone, WhatsApp ou outro meio de comunicação à distância qualquer, caso não seja um cuidador. No caso dos cuidadores, também devem oferecer apoio, carinho e consideração, mas sem deixar de aplicar todas as medidas de proteção individual respectivamente indicadas.
  6. No caso de desejar visitar quem teve Covid-19 ou RT-PCR positivo e que não precisou ficar internado, fazer a visita na terceira ou quarta semana após o início dos sintomas ou da realização dos exames. Talvez esta seja a condição mais segura contra a transmissão do SARS-CoV-2 na oportunidade de uma visita. Entretanto, recomenda-se que o visitante e o morador usem máscara, se encontrem ao ar livre, higienizem as mãos antes e depois do encontro, não se toquem e mantenham uma distância mínima de dois metros um do outro. Tudo isso também é recomendado no caso de necessidade de se encontrar pessoalmente com qualquer outra pessoa, independente do histórico da Covid-19;
  7. Nos casos em que a pessoa precisou ser internada, informar-se sobre quando seria seguro visitá-la, porque, neste caso, vai depender de cada situação em particular;
  8. Não estigmatizar, não subtrair e não segregar socialmente pessoas com Covid-19 porque isso pode piorar a condição da pessoa. É ruim para aquele que estigmatiza e prejudica toda a comunidade, pois o preconceito aumenta o sofrimento e pode atrapalhar, sobremaneira, no controle da epidemia³.

Assim, com o conhecimento correto e o cuidado humanizado, será muito mais fácil enfrentar a pandemia da Covid-19.

Referências:

  1. Filho AAM. Relação Médico-paciente: Teoria e prática, o fundamento mais importante da prática médica. 2. ed. Belo Horizonte: Coopmed Editora Médica, 2005.
  2. Souto BGA. Implicações existenciais da infecção pelo HIV. Curitiba, PR: CRV, 2014.
  3. Estado do Ceará. Secretaria de Saúde. Escola de Saúde Pública do Ceará. Cartilha sobre estigma e preconceito na Covid-19. Saúde Mental e a pandemia de Covid-19. Vol. 2. sl. sd. Disponível em <https://coronavirus.ceara.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/Vol.-2-Estigma-e-Preconceito-04.06.pdf>. Acesso em: 11 out. 2020.
  4. Saúde Mental e a pandemia de Covid-19. Vol. 2. sl. sd.
  5. Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ. Campus virtual. Módulo I. Introdução ao Novo Coronavírus. Manejo da Infecção causada pelo Novo Coronavírus. Disponível em: <https://mooc.campusvirtual.fiocruz.br/rea/coronavirus/modulo1/aula2.html>. Acesso em: 11 out. 2020.
  6. Long et al. Antibody responses to SARS-CoV-2 in patients with COVID-19. Nature Medicine. 26:845-848. 2020.
  7. Wiersinga WJ et al. Pathophysiology, Transmission, Diagnosis, and Treatment of Coronavirus Disease 2019 (COVID-19). JAMA. 324(8):782-793; 2020. DOI: 10.1001/jama.2020.12839.
  8. Chen J et al. Cellular Immune Responses to Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus (SARS-CoV) Infection in Senescent BALB/c Mice: CD4 T Cells Are Important in Control of SARS-CoV Infection. Journal of Virology 2010; Feb:1289–301. DOI: 10.1128/JVI.01281-09.
  9. Hsueh PR et al. Chronological evolution of IgM, IgA, IgG and neutralisation antibodies after infection with SARS-associated Coronavirus. Clin Microbiol Infect 2004; 10:1062–66.
  10. Li X et al. Molecular immune pathogenesis and diagnosis of COVID-19. Journal of Pharmaceutical Analysis.  DOI: https://doi.org/10.1016/j.jpha.2020.03.001.
  11. Xiang F et al. Antibody Detection and Dynamic Characteristics in Patients With Coronavirus Disease 2019. Clinical Infectious Disease. XX(XX):1–5; 2020. Available in: <https://academic.oup.com/cid/advance-article/doi/10.1093/cid/ciaa461/5822173>. Access in: oct. 11, 2020. DOI: https://doi.org/10.1093/cid/ciaa461

Créditos da imagem: Jcomp no Freepik

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Autor

  • Bernardino Geraldo Alves Souto

    Médico generalista pela Universidade Federal de Juiz de Fora, MG, Mestre em Medicina (Medicina Tropical) e Doutor em Medicina/Ciências da Saúde (Infectologia e Medicina Tropical) pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-doutorado em Microbiologia e Infecção pela Universidade do Minho (Portugal).Também é especialista em Medicina Intensiva pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira, em Clínica Médica/Medicina Interna pela Sociedade Brasileira de Clínica Médica e em Epidemiologia em Serviços de Saúde pela UFMG. Na Universidade Federal de São Carlos, é Professor Associado no Curso de Medicina, líder do Grupo de Pesquisa Clínica e Epidemiológica Aplicada em Ciências da Saúde e docente no Programa de Pós-graduação em Gestão da Clínica. Atua especialmente em medicina geral integral, epidemiologia, doenças infecciosas(HIV/AIDS), medicina intensiva, clínica médica, vigilância em saúde, infecção hospitalar, educação médica e gestão pública de saúde. Supervisor de equipe no grupo de Pesquisa Baseada em Bioinformática Integrando Evolução, Biologia e Medicina, do domínio de microbiologia e infecção do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde da Escola de Medicina da Universidade do Minho, em Braga, Portugal

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