Por Sidnay Fernandes dos Santos Silva e Terezinha Ferreira de Almeida

 

A expressão distanciamento social é formada pelo substantivo masculino derivado do verbo distanciar e pelo adjetivo “social”. A palavra “distanciamento”, em sua acepção dicionarizada, é ato ou efeito de distanciar ou distanciar-se; afastamento, espaçamento. Distanciar-se socialmente significa, portanto, abster-se das práticas sociais nas quais há proximidade entre os corpos, em outras palavras, evitar o contato físico.

No contexto da pandemia da COVID-19,  a expressão distanciamento social  pode ser definida  como um conjunto de ações que buscam limitar o convívio social de modo a impedir ou controlar a propagação do SARS-CoV-2 com o objetivo de reduzir a probabilidade de contato entre pessoas portadoras desse vírus com outras que não estão infectadas, minimizando a transmissão da doença e, consequentemente, a mortalidade.

A OMS e a Organização Pan Americana de Saúde (OPAS) recomendam que se mantenha a distância mínima de um metro entre pessoas nos lugares públicos e no convívio social[1]. Historicamente, medidas não farmacológicas como o uso de máscaras, a correta higienização das mãos e o distanciamento social foram praticadas também durante a Gripe Espanhola, como também são recomendadas em outros casos de doenças infecciosas transmitidas por gotículas, contato físico direto e/ou indireto (transmissão pelo toque em superfície contaminada, por exemplo).

No intuito de resguardar a economia e a ordem pública, o governo brasileiro reformulou a proposta de distanciamento social, criando duas categorias: Distanciamento Social Ampliado (DSA) e Distanciamento Social Seletivo (DSS). O Ministério da Saúde propõe que a aplicação de Distanciamento Social Ampliado (DSA) e Distanciamento Social Seletivo (DSS) considere os critérios epidemiológicos e a capacidade de atendimento da rede de saúde[2]. Essa proposta, um tanto controversa, é rechaçada por boa parte dos especialistas em saúde[3] por ser considerada pouco eficaz para a prevenção do contágio da COVID-19. O DSS, no qual apenas a população considerada grupo de risco, por portar comorbidades, deve se resguardar de suas atividades sociais e laborais para evitar o contato físico tem sido a medida mais adotada nos municípios do país. Nesse caso, o grupo de risco pratica o isolamento físico, exercendo sua atividade laboral de maneira remota, enquanto a parcela da sociedade considerada saudável permanece ativa e adotando as medidas não farmacológicas de prevenção, dentre elas o distanciamento físico de pelo menos um metro de distância entre as pessoas durante a realização de suas atividades em ambiente público.

Para as autoridades brasileiras, o DSA deve ser opção a ser adotada somente em regiões pandêmicas em que a escala de contaminação está acima de 50% da capacidade de absorção da rede de saúde. Nessas regiões, adota-se a prática do lockdown, isto é, o fechamento total do comércio e a paralisação das atividades laborais, com exceção dos serviços considerados essenciais, que devem obedecer às normas de segurança para evitar o espalhamento do SARS-CoV-2.

No entanto, a problemática não se restringe ao campo científico da Saúde ou a decretos e leis outorgadas por autoridades governamentais e municipais, há outros desafios que podem comprometer a viabilidade das medidas protetivas. No Brasil, os maiores desafios são oriundos do alto índice de desigualdades sociais. As implicações causadas pelo contágio global do coronavírus ultrapassam o conceito de pandemia, chegando a ser considerada uma “sindemia” [4]. Esse termo foi cunhado por Merrill Singer, antropólogo norte-americano, para explicar uma situação em que duas ou mais doenças interagem de tal forma que causam danos maiores do que a mera soma de ambas. O cenário social brasileiro, com pessoas que moram nas ruas, em moradias precárias, com inexistência de saneamento básico e condições de higiene, aliado à insegurança alimentar comprometem a adoção de medidas profiláticas propostas para a contenção da COVID-19[5]. Em outras palavras, o impacto do vírus entre moradores de rua que não possuem casas, entre habitantes de favelas e minorias étnicas é maximizado pela situação de vulnerabilidade social. Respeitar o período de quarentena ou isolar em casa um integrante da família que esteja infectado torna-se um feito irrealizável quando a família dispõe de apenas um quarto e um banheiro na moradia. Lavar as mãos frequentemente torna-se impraticável quando não há água potável encanada e o esgoto escorre a céu aberto. Ficar em casa e abster-se de trabalhar é impossível quando não se tem segurança alimentar.

Já há vários estudos desenvolvidos a partir de boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde do Brasil e de pesquisas de campo mais amplas comprovando que pobres, negros e indígenas são as pessoas que mais morrem vítimas da COVID-19[6]. Uma pesquisa publicada por brasileiros na The Lancet Global Health, em 23/09/2020, constatou que, “na parcela 20% mais pobre da população, a prevalência [da COVID-19] foi de 3,7%, mais do que o dobro do 1,7% encontrado entre os 20% mais ricos” e  que a prevalência  “entre os indígenas é de 6,4% mais de quatro vezes maior do que em pessoas brancas (1,4%)”[7].

As pessoas mais pobres, que enfrentam outras emergências além das sanitárias, estão impedidas de cumprir as regras de distanciamento social.  A primeira morte por COVID-19 no Brasil foi da diarista Rosana Aparecida Urbano, moradora de um bairro pobre da periferia de São Paulo, Cidade Tiradentes[8]; a “primeira vítima do Rio de Janeiro era doméstica e pegou coronavírus da patroa no Leblon”[9]. Outra empregada doméstica, Mirtes Renata de Souza, com escolas e creches fechadas por conta da pandemia e sem condições de ficar em casa em trabalho remoto,  levou o filho Miguel de 5 anos para a casa da patroa em um prédio de luxo na capital de Pernambuco e, enquanto passeava com a cadela da família no dia 02 de junho deste ano, seu filho, que ficou aos cuidados da patroa, caiu do prédio e morreu[10]. Diante desses fatos é necessário reconhecer que o combate à COVID-19 deve aliar regras de prevenção a políticas públicas que enfrentem as disparidades sociais desnudadas nesta pandemia. Não há somente um vírus a ser combatido, mas sim uma realidade cruel que eleva a letalidade desse vírus para as populações mais vulneráveis.

O ineditismo do contexto de pandemia, somado às diretrizes equivocadas do governo federal brasileiro na condução da crise gerada pelo SARS-CoV-2, tais como recomendação de medicação sem eficácia comprovada, minimização da letalidade do vírus, falta de fomento às pesquisas e práticas irresponsáveis que encorajam aglomerações de pessoas, têm contribuído para o aumento do contágio da COVID-19 e, por consequência,  para um constante estado de endurecimento de medidas restritivas referentes à mobilidade das pessoas dentro e fora de seus municípios e estados e para o prolongamento do período de  distanciamento físico, que já ultrapassa a marca de oito meses. A postura da Presidência da República do Brasil diante do enfrentamento da pandemia da COVID-19, desde seu início, vai na contramão da Ciência e das orientações da OMS e, sob o slogan de que “o Brasil não pode parar”, deixou as marcas de seu posicionamento ideológico.

De modo resumido, no contexto da pandemia de COVID-19, pode-se dizer que isolamento é para o individuo infectado com SARS-Cov-2, independentemente do local no qual será feito esse isolamento (intra-hospitalar ou domiciliar); distanciamento é para todos os indivíduos, enquanto medida tomada para evitar aglomerações – e engloba a campanha #fique em casa; e quarentena é para o indivíduo que tiver contato com alguém que testar positivo ou estiver em área de alto risco de contaminação.

As fronteiras de sentidos entre os termos isolamento (físico ou social) e distanciamento (físico ou social) são tênues, porém – e por isso mesmo –, pode-se afirmar que o uso de uma ou outra em diferentes discursos que circulam na mídia ou mesmo em diálogos cotidianos indica diferentes posições ideológicas e políticas.

 

Notas

[1] https://www.paho.org/pt/covid19

[2] https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46666-ministerio-da-saude-define-criterios-de-distanciamento-social

[3] https://informasus.ufscar.br/saude-do-trabalhador-e-distanciamento-social-ampliado-para-enfrentamento-da-pandemia-de-covid-19/

https://informasus.ufscar.br/sobre-a-proposta-de-distanciamento-social-seletivo-feita-pelo-ministerio-da-saude-como-medida-de-enfrentamento-da-pandemia-da-covid-19/

[4] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54493785

[5] https://recordtv.r7.com/balanco-geral-rj/videos/o-virus-na-favela-3-falta-de-estrutura-impede-moradores-da-cidade-de-deus-de-respeitar-a-quarentena-30072020

https://jornaldebrasilia.com.br/brasil/quarentena-e-pouco-factivel-em-pais-pobre-diz-coordenador-de-centro-contra-coronavirus-em-sp/

[6] https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/06/05/negros-morrem-40-mais-que-brancos-por-coronavirus-no-brasil; https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53338421.

[7] http:  https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/bbc/2020/09/23/estudo-reforca-indicios-de-que-pobres-e-indigenas-sao-mais-vulneraveis-a-covid-19.htm?cmpid//informe.ensp.fiocruz.br/noticias/50084

[8] https://congressoemfoco.uol.com.br/saude/ministerio-da-saude-corrige-data-da-primeira-morte-por-covid-no-brasil/

[9] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/19/primeira-vitima-do-rj-era-domestica-e-pegou-coronavirus-da-patroa.htm

[10] https://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_menino_Miguel

Créditos da imagem: Freepik no Freepik

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Autor

  • Fernanda Castelano Rodrigues

    Dados da editora: professora do Departamento de Letras da UFSCar desde 2008. Mãe, feminista, defensora dos Direitos Humanos, tem mestrado (2003) e doutorado (2010) em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela Universidade de São Paulo. Tem também especialização em Políticas para a Promoção da Igualdade na América Latina pela FLACSO/CLACSO (2018) e pós-doutorado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Participou da coordenação dos Módulos de Língua Portuguesa do Programa Mais Médicos para o Brasil (2013-2014). Foi diretora do Instituto de Línguas da UFSCar (2016-2017). Pesquisa no campo das Políticas Linguísticas, com especial interesse pelos Direitos Linguísticos de comunidades marginalizadas.

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