Autoria: Angela Coradini.

Descrição da obra: Forma ficcional de dar poesia a momentos de um cotidiano de quarentena.

Expressão: Literatura.

 

diário de quarentena alheio

 

ela queria abraçar. mas tem medo de morrer.

liga no banco. sente vergonha.

a voz de lá fala, “precisa de dinheiro?”

“não, quero um seguro de vida”.

27 gatos. 15 cachorros. um ex-marido.

ração garantida.

dívidas resumidas.

ainda tem medo.

“um fumante tem 16 vezes mais chances de morrer, verdade?”.

notícias e desencontros.

gatilhos de ansiedade.

estende todas as calcinhas no sol.

abre a vida como se fosse guarda-sol.

limpa a casa a conta-gotas.

passa a roupa de sete meses ou mais. 

e admite, são de doze meses atrás.

quem ainda passa roupa? ela passa.

cargos de chefia não dão trégua em pandemia.

trabalha de máscara.

alguém espirra sem máscara.

ela xinga todo mundo de máscara!

tem medo de morrer.

mais ainda de matar. e de raiva!

a vida não tem mais balada.

o delay da pia mudou de sete para dois dias.

parece besta, né.

“mas dá banho no pote de geléia não é?”

passa álcool em gel no volante.

passa álcool em gel nos sacos.

passa álcool em gel nos gatos.

os gatos estão cansados da intrusa na casa.

e ela nem queria ficar em casa.

conta as horas sem cigarro.

conta os dias sem vinho.

já não conta as semanas sem sexo.

fodam-se eles.

deixou de pensar em rolê para não morrê.

deixou de pensar em boy para não matar.

horas distraídas com um quebra-cabeça que não monta futuro algum.

horas com ela mesma.

horas que a fazem sua própria casa. 

e não faziam há tanto tempo ela ser.

na verdade o medo é de não poder viver.

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