Em dezembro de 2019, foi descoberto na China um vírus chamado oficialmente de SARS-CoV-2 (Síndrome Respiratória Aguda por Coronavírus 2) pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No início de fevereiro, a OMS denominou a doença causada pelo novo coronavírus de COVID-19, que significa Corona Virus Disease (Doença do Coronavírus), enquanto 19 refere-se ao ano em que ocorreram os primeiros casos da doença. Em 11 de março de 2020, a mesma Organização declarou a COVID-19 como uma pandemia. Apesar das inúmeras pesquisas que estão sendo realizadas para compreender a fisiopatologia da doença e formas de tratá-la, muitas incertezas ainda circundam o tema (1,2).

Evidências mostram que diversas comorbidades estão associadas a maior gravidade da infecção. No Brasil, entre os óbitos confirmados pela COVID-19, 70% tinham mais de 60 anos e 67% apresentavam pelo menos um fator de risco. Dentre esses fatores de risco, a cardiopatia foi a principal comorbidade associada e esteve presente em 1566 dos óbitos, seguido do Diabetes Melito (DM), em 1223 óbitos, doença renal, em 296, pneumopatia, em 279 casos e doença neurológica, em 265, totalizando 4025 óbitos. Na grande maioria dos grupos de risco, os indivíduos infectados tinham mais de 60 anos (3).

A prevalência de comorbidades dentre os pacientes sofre grande variação de acordo com o estudo e a amostragem populacional utilizada. Uma metanálise chinesa que incluiu 1527 pacientes evidenciou que as doenças mais prevalentes eram a hipertensão em 17,1% dos casos, doenças cardiocerebrovasculares em 16,4%, seguidas pelo diabetes em 9,7% das ocorrências (4,5).

Estudos indicam ainda que a susceptibilidade para infecção por SARS-CoV-2 não é maior em pessoas diabéticas do que em relação à população geral. Uma metanálise de 12 estudos, que incluiu dados referentes a 2108 chineses infectados pela COVID-19, reportou prevalência de 10,3% de diabéticos, o que era similar à prevalência nacional de 10,9%. Segundo os autores, esses dados sugerem que apenas os pacientes com longa história de diabetes (independente o tipo), mau controle metabólico, presença de complicações, doenças concomitantes e idosos tenham um prognóstico pior da infecção (6).

No entanto, o paciente diabético possui a resposta imune prejudicada pela sua condição. As alterações verificadas no DM inibem a quimiotaxia dos neutrófilos, a fagocitose e consequente morte intracelular de micróbios. Na imunidade adaptativa, existe um atraso na ativação das células mediadoras Th1 e uma resposta hiper-inflamatória tardia é comumente observada em diabéticos (7).

Potenciais mecanismos que podem aumentar a susceptibilidade desses pacientes à infecção pela COVID-19, são: a) a maior afinidade celular de ligação ao vírus, facilitando sua entrada; b) diminuição do clearance viral; c) redução no funcionamento das células T; d) maior ocorrência de resposta hiper inflamatória e síndrome de tempestade de citocinas; e) possibilidade de doença cardiovascular associada (7).

A entrada do vírus na célula do hospedeiro aparenta ser dependente de receptores como a Enzima Conversora de Angiotensina 2 (ECA2), cuja expressão se dá de forma intensa nos pulmões, coração, rins, células endoteliais, células imunes e pâncreas. Em um estudo mendeliano randomizado, foram exploradas doenças ou características que poderiam estar ligadas ao aumento da expressão de ECA2 no pulmão. Foi evidenciado que o DM estava causalmente associado ao aumento de expressão dessa enzima. Além disso, níveis circulantes de furina, uma protease celular envolvida na entrada viral pela clivagem do domínio S1 e S2 da proteína Spike, são elevados nesses pacientes. Sendo assim, esses estudos apoiam a hipótese de que pacientes com DM são mais suscetíveis à SARS-Cov-2, porém, mais pesquisas são necessárias para confirmar os dados apresentados (7).

Os inibidores da Enzima Conversora de Angiotensina (ECA) são comumente utilizados por pacientes com diabetes e hipertensão. Esses medicamentos possuem intensa atividade na regulação imune e reduzem a inflamação pulmonar e sistêmica ao diminuir os níveis de citocinas (4,8). Apesar desses efeitos protetivos, uma das hipóteses no meio científico era de que os níveis de expressão de ECA2, receptor que permite a entrada do vírus na célula, são aumentados por esses inibidores. No entanto, não foi desenvolvido nenhum estudo em animais ou humanos comprovando que drogas inibidoras do Sistema Renina-Angiotensina (SRA) aumentem os níveis de ECA2 no pulmão (9,10).

Uma análise retrospectiva envolvendo 112 pacientes infectados pelo SARS-CoV-2 e com doença cardiovascular não mostrou diferença significativa na proporção de uso dos inibidores da ECA (IECAs) e bloqueadores do receptor de angiotensina (BRA) ao comparar os sobreviventes com os não sobreviventes (6). Isso sugere que não há conexão evidente entre o uso dessa classe de medicamentos e a piora do prognóstico. Logo, mesmo que haja uma preocupação quanto à possibilidade de malefícios relacionados a essas drogas, não há evidência científica que justifique a interrupção desse esquema de tratamento (10,11).

De acordo com uma pesquisa recente, após serem analisados 138 pacientes hospitalizados com COVID-19, foi relatado neutrofilia relacionada à tempestade de citocinas induzidas pela entrada do vírus no organismo. Também foi identificada lesão renal aguda e ativação das vias de coagulação relacionadas a manutenção da resposta inflamatória. Esses dados podem estar relacionados com as causas finais de morte nos pacientes infectados (12,13).

Outro estudo também identificou que pacientes infectados pelo coronavírus com diabetes, comparados com pacientes infectados não-diabéticos, apresentam linfocitopenia (contagem de linfócitos extremamente baixa no sangue periférico), com dimiuição das células TCD4+ e CD8+, além de uma proporção maior de Th1, enquanto a quantidade de neutrófilos é muito mais alta. Além disso, a concentração plasmática de alguns dos biomarcadores relacionados à inflamação é muito maior comparada com os não diabéticos, como os níveis de IL-6, ferritina, ESR (erythrocyte sedimentation rate), Proteína Reativa e dímero-D, que podem ser associados a gravidade do quadro (12).

O IL-6 é um ótimo marcador de gravidade da doença, indicando o pior prognóstico. Além disso, um aumento na ferritina pode indicar a ativação do sistema monocítico-macrofágico, parte crucial da inflammatory storm (tempestade inflamatória). Esse cenário indica que pacientes com diabetes são mais suscetíveis a desenvolver a tempestade inflamatória, o que pode levar a deterioração do quadro (12).

No DM do tipo 2, além do acentuado processo inflamatório, ocorre um desequilíbrio entre coagulação e fibrinólise, com níveis aumentados de fatores coagulantes e inibição relativa do sistema fibrinolítico. Tanto a resistência à insulina quanto o DM do tipo 2 estão associadas à disfunção endotelial e aumento da ativação e agregação plaquetária, que é consequente da menor liberação de fatores que inibem a agregação plaquetária pelas células endoteliais (14). Esse cenário contribui para o desenvolvimento de um estado pró-trombótico hipercoagulável. Logo, segundo esses estudos, o DM tipo 2 sozinho ou associado à idade avançada e à hipertensão, pode dificultar a resposta clínica na SARS-CoV2.

Um estudo chinês comparou 39 pacientes com SARS-CoV2 sem diabetes prévia e que não receberam tratamento com esteroide com seus 39 irmãos saudáveis. Vinte dos 39 pacientes com SARS-CoV2 desenvolveram diabetes durante hospitalização. É provável que SARS-CoV possa causar danos no pâncreas e gerar dependência insulínica. Essa suspeita de que o vírus afeta o metabolismo da glicose é reforçado devido ao fato de que pacientes diabéticos usuários de insulina tiveram a dose do medicamento aumentado pós hospitalização (6).

Apesar da falta de dados, é amplamente aceita a importância em se manter controlado os níveis de glicose sanguíneo em pacientes com COVID-19. Informações sobre pacientes infectados pela Influenza H1N1 revelam que foram os pacientes com glicemia descontrolada que tiveram maior risco em desenvolver complicações e morte (5,15,16).

Para a manutenção do controle glicêmico em pacientes críticos hospitalizados, a insulina tem sido amplamente usada. Esse medicamento tem um papel anti-inflamatório e reduz a expressão de biomarcadores inflamatórios. A monitoração contínua da concentração de glicose pode reduzir os episódios de hipoglicemia. No entanto, os dados a respeito do uso em pacientes infectados pelo coronavírus é limitado (17).

Outro medicamento comumente utilizado em diabéticos é a metformina, que tem um papel anti-inflamatório e, em estudos pré-clínicos demonstra reduzir a circulação de biomarcadores inflamatórios em pessoas com DM do tipo 2. Não há informações sobre os efeitos imunorregulatórios da metformina em infectados por coronavírus. A metformina deve ser usada com precaução em pacientes instáveis (17).

A DPP4 (dipeptidil peptidase 4) é uma enzima que funciona como um co-receptor para uma subunidade do coronavírus. Inibidores da DPP4 são utilizados em pacientes diabéticos tipo 2, entretanto, há pouca informação se a redução da atividade desta enzima gera impacto clínico em indivíduos contaminados. Vale ressaltar que os pacientes com infecção ativa por coronavírus e que fazem uso de inibidores de DPP4 devem ter a dose do medicamento ajustada quando houver redução da função renal (17).

Vários estudos pré-clínicos demonstraram que os agonistas do receptor de GLP-1 (peptídeo semelhante a glucagon 1) atenuam a inflamação, reduzem a produção de citocinas e preservam a função pulmonar em camundongos e ratos com lesão pulmonar. Embora tais medicamentos diminuam os níveis séricos de glicose em alguns estudos com pacientes críticos, as informações são insuficientes para a realização de recomendações terapêuticas para o uso desses agentes no contexto da infecção por coronavírus (18).

As sulfonilureias, outra classe de medicamentos utilizada em diabéticos, aumentam o risco de episódios de hipoglicemia, especialmente os que apresentam maior tempo de meia vida. A administração dessa classe é evitada em pacientes críticos hospitalizados. Apesar dos inibidores de SGLT2 (Sodium-Glucose Co-transporter) serem bem tolerados, e em casos de insuficiência cardíaca desempenharem um papel protetivo, pacientes usuários desses medicamentos e que foram contaminados pela COVID-19 podem desenvolver anorexia, desidratação, rápida deterioração do estado clínico e cetoacidose euglicêmica (19). Sugere-se portanto, após avaliação individualizada, descontinuação dos inibidores da SGLT2 em pacientes instáveis com infecção grave pelo coronavírus (20).

Um estudo publicado em 1990 evidenciou que pacientes com DM do tipo 2 tratados com insulina ou glibenclamida associada a hidroxicloriquina (HCQ) por seis meses tiveram uma diminuição significativa na HbA1c (hemoglobina glicada) em 3,3% em comparação com o placebo. Além disso, pacientes que estavam utilizando insulina também apresentaram uma redução nas doses do medicamento em 30%. Portanto, pode ser relevante avaliar em estudos clínicos o possível efeito antiglicêmico da HCQ em diabéticos infectados pelo Covid-19 (18).

Para orientar o manejo dos pacientes diabéticos com diagnóstico de SARS-CoV-2, a Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) emitiu uma nota em conjunto com a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), ressaltando a falta de evidências científicas de que a infecção pelo coronavírus promova um aumento na incidência de cetose ou cetoacidose em relação a outras infecções em pacientes com ou sem DM. No entanto, esse cenário não pode ser descartado, tendo em vista os diversos casos de hiperglicemia severa em pacientes graves hospitalizados. Além disso, o documento também sugeriu que os pacientes com DM do tipo 2 que estejam usando simultaneamente insulina e inibidores de SGLT2 mantenham o esquema terapêutico, mas é recomendado a suspensão caso haja infecção sintomática pela COVID-19. Pacientes internados não devem, segundo a recomendação, receber inibidores da SGLT2 devido ao maior risco de desidratação. Durante a internação, a hiperglicemia deve ser tratada com insulina em seus esquemas variados (21).

 

Referências:

  1. MADDALONI,E., BUZZETTI, R. Covid-19 and diabetes mellitus: unveiling the interaction of two pandemics. Diabetes Metab Res Rev. e33213321, 31 de março de 2020.
  2. Por que a doença causada pelo novo vírus recebeu o nome de Covid-19? Fiocruz. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/pergunta/por-que-doenca-causada-pelo-novo-virus-recebeu-o-nome-de-covid-19. Acesso em: 30 de abril de 2020.
  3. Boletins epidemiológicos. Disponível em: https://www.saude.gov.br/boletins-epidemiologicos. Acesso em: 30 de abril de 2020;
  4. VADUGANATHAN, M. et al. Renin-Angiotensin-Aldosterone System Inhibitors in Patients with Covid-19. N Engl J Med. 30 de março de 2020;
  5. GUAN, W., Ni Z, Hu Y, Liang W, Ou C, He J, et al. Clinical Characteristics of Coronavirus Disease 2019 in China. N Engl J Med. 28 de fevereiro de 2020.
  6. Hussain A., Bhowmik B., do Vale Moreira, N.C. COVID-19 and diabetes: Knowledge in progress. Diabetes Res Clin Pract. 9 de abril de 2020;162:108142.
  7. Muniyappa, R., Gubbi, S., COVID-19 Pandemic, Corona Viruses, and Diabetes Mellitus. Am J Physiol Endocrinol Metab. 31 de março de 2020;
  8. Meng J, Xiao G, Zhang J, He X, Ou M, Bi J, et al. Renin-angiotensin system inhibitors improve the clinical outcomes of COVID-19 patients with hypertension. Emerg Microbes Infect. dezembro de 2020;9(1):757–60.
  9. Ma RCW, Holt RIG. COVID-19 and diabetes. Diabet Med J Br Diabet Assoc. 3 de abril de 2020;
  10. ESC Guidance for the Diagnosis and Management of CV Disease during the COVID-19 Pandemic [Internet]. [citado 30 de abril de 2020]. Disponível em: https://www.escardio.org/Education/COVID-19-and-Cardiology/ESC-COVID-19-Guidance, https://www.escardio.org/Education/COVID-19-and-Cardiology/ESC-COVID-19-Guidance
  11. Pal R, Bhansali A. COVID-19, diabetes mellitus and ACE2: The conundrum. Diabetes Res Clin Pract. abril de 2020;162:108132.
  12. Guo W, Li M, Dong Y, Zhou H, Zhang Z, Tian C, et al. Diabetes is a risk factor for the progression and prognosis of COVID-19. Diabetes Metab Res Rev. 31 de março de 2020;e3319.
  13. Yang JK, Feng Y, Yuan MY, Yuan SY, Fu HJ, Wu BY, et al. Plasma glucose levels and diabetes are independent predictors for mortality and morbidity in patients with SARS. Diabet Med J Br Diabet Assoc. junho de 2006;23(6):623–8.
  14. Varga Z, Flammer AJ, Steiger P, Haberecker M, Andermatt R, Zinkernagel AS, et al. Endothelial cell infection and endotheliitis in COVID-19. The Lancet [Internet]. 20 de abril de 2020 [citado 30 de abril de 2020];0(0). Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30937-5/abstract
  15. Ak S, R G, A G, A M. Diabetes in COVID-19: Prevalence, Pathophysiology, Prognosis and Practical Considerations [Internet]. Vol. 14, Diabetes & metabolic syndrome. Diabetes Metab Syndr; Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32298981/. Acesso em: 22 de abril de 2020.
  16. Gupta R, Ghosh A, Singh AK, Misra A. Clinical considerations for patients with diabetes in times of COVID-19 epidemic. Diabetes Metab Syndr. 14(3):211–2, 2020;
  17. Drucker DJ. Coronavirus infections and type 2 diabetes-shared pathways with therapeutic implications. Endocr Rev. 15 de abril de 2020;
  18. Ceriello A, Stoian AP, Rizzo M. COVID-19 and diabetes management: What should be considered? Diabetes Res Clin Pract. 17 de abril de 2020.
  19. Hamblin PS, Wong R, Ekinci EI, Fourlanos S, Shah S, Jones AR, et al. SGLT2 Inhibitors Increase the Risk of Diabetic Ketoacidosis Developing in the Community and During Hospital Admission. J Clin Endocrinol Metab. 1 de agosto de 2019.
  20. Nota conjunta sobre o uso de inibidores da SGLT2 e o risco de cetose e cetoacidose durante a pandemia de COVID-19 [Internet]. Diabetes na era Covid-19. 2020. Disponível em: https://www.diabetes.org.br/covid-19/nota-conjunta-sobre-o-uso-de-inibidores-da-sglt2-e-o-risco-de-cetose-e-cetoacidose-durante-a-pandemia-de-covid-19/. Acesso em 19 de abril de 2020.
  21. Notas de esclarecimentos da Sociedade Brasileira de Diabetes sobre o coronavírus (COVID-19). Diabetes na era Covid-19. 2020. Disponível em: https://www.diabetes.org.br/covid-19/notas-de-esclarecimentos-da-sociedade-brasileira-de-diabetes-sobre-o-coronavirus-covid-19/. Acesso em: 19 de abril de 2020.

Autora: Maria Clara Cavalcante Espósito

Créditos da imagem: Xb100 no Freepik

Veja também:

Envie suas dúvidas sobre Coronavírus ou COVID-19

 

 

Autor

  • Cristina Helena Bruno

    Farmacêutica-Bioquímica (UNESP,1994), Mestre em Ciências Biológicas (UNESP, 2000) e Doutora em Ciências (UFSCar, 2004). Pós-Doutora em Nanotecnologia Farmacêutica (UNESP, 2007-2009; 2014-2015). Docente do Curso de Farmácia (UFES, 2009-2017). Chefe da Unidade de Farmácia Clínica do HU-UFSCar (2015-2017) e docente do Curso de Medicina (UFSCar, 2017 – atual). Temas de interesse: infecção hospitalar/uso racional de medicamentos, Farmacologia Clínica, adesão à tratamento de doenças. Email: crishbruno@gmail.com

    View all posts

Deixe um comentário