Por Lafayette Batista Melo e Mariana Morales da Silva
Abreviação/acrônimo de COronaVIrus Disease (COVID), com primeiro caso registrado em dezembro de 2019 (por isso a presença de “-19” na sigla). Em português: doença do coronavírus ou doença causada pelo vírus corona.
E se diz a COVID-19 ou o COVID-19? Coronavírus ou novo coronavírus? SARS-CoV-2 significa a mesma coisa? Por que em alguns lugares aparece “vírus chinês” e, em outros, nunca se usou essa expressão? Essas dúvidas podem ter surgido inclusive durante a leitura de uma das diversas reportagens divulgadas, artigos publicados, notícias ouvidas e memes compartilhados sobre a atual pandemia.
Tais questionamentos chegam a parecer irrelevantes diante da gravidade da situação vivenciada com a pandemia da COVID-19 e suas consequências. Mas as confusões sobre como se diz isto ou aquilo demonstram o efeito viral não apenas dos contágios do vírus SARS-CoV-2, mas também da enorme quantidade de palavras e expressões associadas ao vírus, à doença e à pandemia.
Termos que invadiram o vocabulário dos brasileiros, permeando praticamente todos os assuntos e transformando sua forma de comunicar. Vale a pena lembrar que alguns deles já existiam, mas, agora, passaram a ser ressignificados conforme o atual contexto. Isso significa que houve uma transformação dos sentidos de algumas palavras e expressões já utilizadas anteriormente enquanto que outras são termos novos.
De maneira geral, pode-se afirmar que, na fala cotidiana, nos meios de comunicação, em redes sociais e em discursos políticos, houve uma apropriação de termos pertencentes ao discurso científico com o intuito tanto de compreender o atual contexto quanto de defender ideias e marcar posicionamentos ideológicos.
Quando se fala em COVID-19, há um conjunto de termos que aparentemente designam o mesmo objeto e, por isso, causam muitos questionamentos. Afinal, se se referissem exatamente à mesma coisa ou evocassem o mesmo sentido, não haveria motivo de serem tantos e diversos: COVID-19, coronavírus, coronavírus de tipo 2, novo coronavírus, SARS-CoV-2, corona e o polêmico termo “vírus chinês”.
Via de regra, COVID-19 funciona como substantivo com flexão de gênero no feminino. Porém, é aceitável também no masculino[1]. A Academia Brasileira de Letras, mesmo não marcando uma posição explícita quanto ao debate em relação à flexão de gênero, menciona “a pandemia da covid-19”. Marca-se, assim, uma flexão de gênero feminino e uma aceitação do uso do termo em grafia com letras minúsculas.
Dedicando-se um pouco mais ao debate, a Real Academia Espanhola e a Academia Francesa argumentam que o gênero da sigla deveria acompanhar o gênero do núcleo do sintagma, ou seja, do termo central que, em suma, é o substantivo principal. No caso de “doença do coronavírus”, o núcleo é o substantivo feminino “doença”. Nesse sentido, COVID-19, com grafia em maiúscula, seria uma sigla de gênero feminino, logo, a COVID-19. Porém, tanto a Real Academia Espanhola quanto a Academia Francesa admitem que a flexão no gênero masculino também é aceitável como um fenômeno linguageiro, ou seja, uma ocorrência constante da fala cotidiana.
É muito comum também os sujeitos falantes designarem o efeito por sua causa, ou seja, atribuem à doença o nome do vírus que a causa. Nesse sentido, a sigla que identifica a doença passa a receber a flexão de gênero do vírus que a provoca: como o vírus, coronavírus, é um substantivo masculino, a sigla COVID-19 pode ser referida no gênero masculino também, o COVID-19.
A Academia Francesa considera ainda que a inserção dos algarismos “-19” refere-se ao ano em que os primeiros casos da doença foram registrados, em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, na China. Diferencia-se, assim, doença e vírus do fenômeno de disseminação de contágios que resultou na declaração de situação de pandemia mundial em março de 2020. Porém, como os efeitos mais drásticos da propagação e do contágio do vírus não se restringiram ao ano do surgimento do primeiro caso registrado, com frequência se observa a dissociação do algarismo na sigla. Assim, ela passa a ser usada e conhecida também simplesmente como COVID.
As confusões em relação ao termo COVID-19, no entanto, não param no debate sobre sua flexão de gênero ou grafia em maiúscula ou minúscula, sobre a presença da indicação numérica ou não. As maiores polêmicas em torno das diferentes designações da doença se encontram nos outros nomes que circulam em discursos cotidianos, jornalísticos, científicos, pedagógicos, políticos, etc. Cada um desses nomes, além de produzir classificações específicas, pode marcar também posições ideológicas variadas[2]. Por essa razão é que vale a pena fazer algumas distinções.
A primeira delas é entre a nomeação de doença e a nomenclatura de vírus. No atual contexto, a nomeação dada à doença é COVID-19, doença do coronavírus ou doença causada pelo vírus corona. Já o vírus é o SARS-CoV-2, sigla que significa coronavírus de tipo 2 causador da doença, conhecida também como Síndrome Respiratória Aguda Severa (SARS) – no Brasil, frequentemente explicada como uma síndrome respiratória aguda grave.
Nesse sentido, quando se menciona a sigla COVID-19 ou apenas SARS, fala-se da doença. Por outro lado, quando se usa a sigla em sua grafia estendida SARS-CoV-2 ou, então, coronavírus de tipo 2 ou coronavírus ou simplesmente corona, faz-se referência ao vírus.
Especificamente em relação à designação do vírus, pode ser feita uma outra distinção, considerada uma subcategoria da primeira, diferenciando o termo técnico-científico e nome popular. SARS-CoV-2 refere-se à identificação do vírus, segundo o Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus (ICTV, em inglês), ou seja, a uma identificação para fins de investigação científica; já os termos coronavírus, novo coronavírus ou corona são os nomes populares para a nomeação do vírus.
Essas diferenças se encadeiam a uma segunda distinção, de ordem funcional. O ato de nomear uma doença tem a função de possibilitar e facilitar o debate público para a divulgação de informações sobre prevenção, propagação, transmissibilidade, gravidade e tratamentos dessa doença. Por isso mesmo, deveriam se tratar de textos e discursos acessíveis e de fácil compreensão pelo público em geral e, nesse sentido, seria interessante dar preferência aos nomes populares, que são utilizados com frequência e, portanto, mais facilmente compreendidos. Já a nomenclatura do vírus objetiva colaborar e facilitar a prática investigativa com fins a desenvolver provas diagnósticas, vacinas e medicamentos. Sendo assim, pode-se encorajar o uso de termos técnico-científicos que estejam de acordo com o rigor da Ciência.
Seguindo essas diretrizes, em teoria, teríamos que o termo COVID ou COVID-19, por fazerem referência à doença, circulariam de forma mais ampla e natural nos meios de comunicação massivos, materiais didáticos com fins educativos e meios de comunicação de divulgação científica como, por exemplo, ocorre na divulgação de materiais didáticos na página da Agência FAPESP[3]: “Hemocentro de Ribeirão Preto e Casa da Ciência produzem vídeos didáticos sobre a COVID-19”. Quando, nesses discursos, se fizesse necessário trazer o nome do vírus, o mais adequado, então, seria trazer os nomes populares, como ocorre dentro da mesma reportagem citada: “CovidNews: Quem é o novo coronavírus?”.
Por outro lado, os termos SARS-CoV-2 e coronavírus de tipo 2, pertenceriam a um vocabulário mais restrito, presente em artigos científicos, circulando em eventos acadêmico-científicos etc.
Porém, uma certa apropriação do discurso tipicamente científico para tentar compreender e explicar o novo contexto, imediata e radicalmente transformado com a chegada desse vírus, trouxe como consequência a invasão desordenada de termos-nomes, principalmente nos meios de comunicação massivos. Para mencionar alguns exemplos, em uma mesma matéria disponível no site R7, encontra-se no título os termos coronavírus e SARS-CoV-2 e no subtítulo, novo coronavírus[4]. Ou seja, em um mesmo discurso, observa-se a mistura de termos técnico-científicos e nomes populares do vírus. Outro exemplo, do mesmo meio de comunicação, está em uma matéria com informações sobre sintomas e prevenção da doença em que se lê, no título, o nome popular do vírus, novo coronavírus, e não o nome da doença, como se esperaria considerando o conteúdo do texto[5]. Neste caso, inclusive, trata-se de um texto informativo, que se denomina como um guia didático, e traz em seu subtítulo o termo técnico-científico SARS-CoV-2, como se os sentidos dessa sigla fossem transparentes para todos os leitores.
Na prática, portanto, os meios de comunicação no Brasil misturam os termos-nomes, que acabam circulando em distintas situações discursivas, transpondo e atravessando fronteiras linguísticas que, de tão esburacadas, às vezes, parecem não existir.
A terceira distinção importante é da ordem das escolhas e memórias que os termos-nomes carregam e evocam. Em 11 de fevereiro de 2020, o ICTV anunciou que o nome do vírus causador da doença COVID-19 seria, como já mencionado, coronavírus de tipo 2 causador da Síndrome Respiratória Aguda Severa (SARS-CoV-2). A construção gráfica da nomenclatura identificadora do vírus, ou seja, a sequência de letras, sua ordem, a distinção entre maiúsculas e minúsculas, a inclusão ou ausência de algarismo etc., segue uma lógica baseada na estrutura genética do vírus e seu contexto. Essa nomenclatura, segundo o Comitê, deriva do vírus SARS, que provocou um surto no ano de 2003, na Ásia. A taxonomia deriva de uma marca que, embora reconheça que são vírus diferentes, explicita uma relação genética entre os dois. Essa relação pode ser notada pela repetição do termo SARS, em SARS de 2003 e SARS-CoV-2.
A referência à relação genética com o vírus anterior, SARS de 2003, pode ser uma das razões pelas quais circula, como nome popular, novo coronavírus, termo com forte incidência, sobretudo, no contexto brasileiro. Nesse sentido, o SARS-CoV-2 seria um “novo” SARS no pensamento popular coletivo, mesmo que a OMS (Organização Mundial de Saúde) tenha esclarecido que se trata de vírus diferentes.
O adjetivo “novo” pode ter sido incorporado com tanta facilidade ao substantivo “coronavírus” também por outra razão: pode ser o efeito que o algarismo “-2” produz em nosso pensamento. Dentro da lógica de uma sequência numérica, a partícula “-2” ou “de tipo 2”, respectivamente em SARS-CoV-2 e coronavírus de tipo 2, aciona a ideia de sequência, continuidade e novidade: é como se houvesse uma versão “-1” anterior.
Nesse sentido, tanto o nome popular novo coronavírus quanto o termo técnico-científico SARS-CoV-2 guardam sentidos complexos, sobretudo para a população asiática, em relação ao surto do SARS de 2003. Ao trazer de volta, para essa população, uma memória traumática muito recente, e também ao vincular tanto o vírus quanto a doença, de tamanha magnitude, a uma localidade específica, a circulação de certos termos-nomes foi, aos poucos, desincentivada.
Por fim, a quarta e última distinção necessária é de ordem político-ideológica. Como o vírus surgiu na China, o esforço em disseminar o uso dos nomes COVID, COVID-19 e coronavírus visa dissociar, de forma mais radical, o vírus e a doença ou qualquer outra memória de sua localidade de origem. Essa prática discursiva objetiva não estigmatizar uma região ou sua população, evitando o reforço de preconceitos étnicos que, no limite, podem incentivar práticas xenófobas e crimes de ódio. Além disso, podem resultar em interferências em relações diplomáticas entre nações.
Essa hipótese pode ser confirmada quando se observa a circulação de um vocabulário fortemente associado a um imaginário bélico em relação à doença e ao vírus que a causa, com o uso massivo de termos como combate, enfrentamento e linha de frente para noticiar práticas e políticas públicas para a crise sanitária. E a questão se aprofunda quando, em diversas matérias de meios de comunicação massivos[6], encontramos o uso do termo “vírus chinês”, expressão pejorativa frequentemente usada por Donald Trump, presidente não reeleito dos Estados Unidos.
A grande problemática dessa prática discursiva é que, associada a esse excessivo vocabulário bélico, pode facilmente provocar um efeito de metonímia por meio do qual se toma a parte pelo todo, com consequências nocivas. Com o funcionamento desse efeito, o “combate ao vírus chinês” pode sugerir o “combate à China”, deslocando práticas de políticas públicas sanitárias para práticas de ruptura diplomática entre nações e nações aliadas.
Historicamente, encontram-se repetidos casos nos quais se vinculam doenças de grande magnitude com localidades específicas. Esse posicionamento, que desconsidera a relação entre discurso e efeitos ideológico-políticos, não levou em consideração as possíveis consequências dessas associações. Tendo como objetivo, então, diminuir os possíveis danos ideológico-políticos que essas identificações poderiam provocar, a OMS recomenda que os vírus e as doenças não sejam associados, em suas nomeações técnicas ou populares, a nenhuma localidade. Marca-se, assim, uma nova postura discursiva, preocupada com os diferentes termos, nomes e discursos que circulam nas grandes crises e que não se limitam, como pode-se perceber, à esfera sanitária, mas que afetam e aprofundam também outras crises já existentes no âmbito social, cultural, étnico, econômico e político.
NOTAS
[1] Matéria de referência de Marcelo Módolo e Henrique Braga, veiculada no Jornal da USP. Disponível em: https://jornal.usp.br/artigos/covid-tem-genero/
[2] Texto de referência da Organização Mundial da Saúde (OMS). Disponível em: https://www.who.int/es/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/technical-guidance/naming-the-coronavirus-disease-(covid-2019)-and-the-virus-that-causes-it
[3] Agência FAPESP: https://agencia.fapesp.br/hemocentro-de-ribeirao-preto-e-casa-da-ciencia-produzem-videos-didaticos-sobre-a-covid-19/34155/
[4] R7: https://noticias.r7.com/brasil/coronavirus-os-indicios-que-apontam-que-o-sars-cov-2-circulava-no-brasil-antes-do-primeiro-diagnostico-oficial-21052020
[5] R7: https://noticias.r7.com/saude/sintomas-contagio-prevencao-tire-duvidas-sobre-o-novo-coronavirus-13032020
[6] R7: https://noticias.r7.com/saude/eua-examinarao-passageiros-em-3-aeroportos-para-barrar-virus-chines-17012020; R7: https://noticias.r7.com/prisma/augusto-nunes/neuronio-solitario-vs-virus-chines-29062020; R7: https://noticias.r7.com/prisma/augusto-nunes/a-alianca-entre-o-jornalismo-de-velorio-e-o-virus-chines-20062020
Crédito da imagem: Edward Jenner em Pexels
Veja também:
Projeto: Enciclopédia Discursiva
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Muito bom! Parabéns pelo texto informativo. Sou revisor de textos e me ajudou muito a fundamentar as correções que precisei sugerir com relação à escrita dos textos que recebi. Tirou todas as minhas dúvidas.
O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa registra a escrita covid-19 (com minúsculas) e indica que se trata de um substantivo feminino. Sendo a ABL responsável pelo Volp, ou seja, pela ortografia da língua portuguesa, a escrita deve ser com minúsculas. https://www.academia.org.br/nossa-lingua/busca-no-vocabulario