Autoria: Profa. Dra. Juliana de Almeida Prado (DMed – UFSCar)

A pandemia do novo coronavírus é a maior emergência de saúde pública que a comunidade internacional enfrenta em décadas. Além das preocupações quanto à saúde física, traz grandes preocupações quanto ao sofrimento psicológico vivido pela população geral e pelos profissionais da saúde envolvidos.

Esta pandemia apresenta uma série de características que são únicas e inéditas. Nenhuma outra teve um alcance global nas proporções da COVID-19. Ela também impacta de forma dramática diversos aspectos de nossa sociedade e nos desperta insegurança em relação ao futuro: crise financeira, a possibilidade de perda do emprego, a necessidade de mudanças nos nossos hábitos, comportamentos, valores.

Além disso, essa crise ocorre em um momento histórico em que a informação é disseminada de uma maneira e numa intensidade jamais vistas, podendo ser comparada a uma avalanche com conteúdo diverso, notícias falsas, boletins diários de mortalidade e novos casos, promessas terapêuticas, antecipação de crises e recessão futura, entre tantas outras.

A COVID-19 tem, portanto, um alto potencial para gerar nas pessoas sofrimento psicológico. Embora a grande maioria da população mundial não tenha sido infectada pelo vírus, a perspectiva de deixar o antigo estilo de vida para trás e a exposição a este modelo de divulgação das informações mobilizam uma série de reações de estresse, medo e ansiedade. Esse cenário é ainda agravado pela falta de vacina e de um tratamento eficaz e acessível até o momento e, também, pelas consequências das medidas preventivas de distanciamento social como quarentena prolongada e crise financeira que, por si só, já foram apontadas como fatores altamente associados à experiências traumáticas (Galea, Tracy, Norris & Coffey, 2008).

Palavras como “ansiedade”, “medo”, “estresse”, “burnout” têm sido constantemente mencionadas (Gallegher, 2020) e há uma série de estudos que já evidenciam sofrimento mental da população em geral e dos trabalhadores da saúde durante a pandemia (Jiang et al., 2020, Huang et al., 2020, Lai et al., 2020).

Ocorre que a COVID-19 tem nos trazido uma nova experiência traumática coletiva. As vivências intensas e complexas de sofrimento mental vivenciados durante e após a pandemia têm uma série de semelhanças com os transtornos mentais relacionados ao trauma (como, por exemplo: Transtorno do Estresse Pós Traumático ou Transtorno do Estresse Agudo). As pessoas têm convivido em estado cada vez maior de insegurança e de estar sob ameaça o tempo todo. Comportamentos de medo, flutuações repentinas de humor, cansaço, esgotamento mental e insônia também são muito frequentes.

Para ampliar a identificação dos sujeitos que necessitem de cuidados específicos em saúde mental, sugere-se que todo o espectro de sintomas descritos acima deva ser valorizado para se caracterizar um caso de sofrimento relacionado ao trauma. Não se deve aguardar o preenchimento dos critérios diagnósticos que constam nos manuais para transtornos relacionados ao trauma.

Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico em Saúde Mental, 5ª edição (DSM-V, APA, 2013), a principal referência clínica e de pesquisa na área da psiquiatria, para se considerar um transtorno mental relacionado ao trauma é necessária a exposição direta a um estressor com risco real de vida (critério A). Porém, esse critério é insuficiente para abarcar a grande diversidade de fatores e as reais implicações desta crise sanitária e econômica sem precedentes. Isso pode ser bastante problemático no planejamento de medidas preventivas e terapêuticas mais eficazes na abordagem de pessoas com sofrimento mental.

Em relação aos profissionais da saúde, os fatores psicossociais no contexto de trabalho durante a crise são bastante adversos e agravam ainda mais o risco de sofrimento emocional. Além disso, muitos desses profissionais não têm experiência de atuação em emergências sanitárias de grande porte, como é o caso da COVID-19, o que representa um estressor adicional (Barros-Delben et al., 2020).

Nas últimas duas décadas, houve avanços importantes no conhecimento relacionado ao trauma psicológico e seu tratamento. Especialmente do ponto de vista neurobiológico, não faltam teorias para descrever os processos envolvidos, sendo a maioria sobre hiperestimulação da rede de neurônios cerebrais relacionada ao medo e sua manifestação no corpo. A pessoa nessas condições passa a conviver com medo antecipatório, constante e disparado por qualquer estímulo interno (como sensação corporal, pensamento, imagem mental) ou externo (ambiente, odor) que lembre a vivência traumática (Pitman et al., 2012). Também estão bem documentados nos transtornos relacionados ao trauma a desregulação das vias que liberam noradrenalina (aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial, por exemplo) assim como de todo o eixo fisiológico que regula o cortisol, nosso hormônio do estresse (eixo hipotálamo-hipófise-adrenal) (Southwick et al., 1999).

Evolutivamente, o nosso corpo apresenta um sistema bastante complexo de respostas aos estímulos do ambiente, o sistema nervoso autônomo (SNA), que é subdividido em sistema nervoso autônomo simpático (SNS) e sistema nervoso autônomo parassimpático (SNP).  O sistema nervoso autônomo simpático (SNS) é responsável por disparar em nosso corpo as respostas que nos preparam para o enfrentamento de situações de ameaças de vida como lutar ou fugir, por exemplo, e são representadas por tensão muscular, aumento da frequência cardíaca e respiratória, entre outras. A ativação desse sistema gera um estado de estresse e de sensação de risco de vida iminente.

Já o sistema nervoso autônomo parassimpático (SNP) é responsável pelas respostas fisiológicas que nos permitem relaxar e descansar. É quando nossa frequência cardíaca diminui, nossos músculos relaxam e nos sentimos seguros para nos engajarmos nas relações sociais sem o sentimento de ameaça. No ser humano, esse sistema é mais evoluído em comparação aos demais mamíferos e é bastante ativado pelas relações interpessoais que mobilizam sentimentos de acolhimento e segurança, essencialmente pelo estímulo da voz, toque e expressão facial (Porges, 2009).

Esses dois sistemas precisam estar em equilíbrio para o nosso bem estar fisiológico e mental, sem ativação excessiva de um ou de outro. Porém, nos transtornos relacionados ao trauma, observa-se, de forma persistente, uma hiperativação do sistema nervoso simpático e uma pouca ativação do sistema nervoso parassimpático (Halvorsen, 2014).

Entre as teorias neurobiológicas, uma linha consistente foi desenvolvida pelo psicólogo Peter Levine (1997), que entende que a desregulação persistente entre os sistemas simpático e parassimpático resultaria no desenvolvimento dos transtornos relacionados ao trauma. Sob essa perspectiva, as respostas fisiológicas intensas que se seguem (especialmente as derivadas da hiperestimulação das vias simpáticas: por exemplo, choro intenso, tremores, formigamentos, certa confusão mental, entre outras) são naturais e até necessárias para que nosso sistema nervoso autônomo recupere seu equilíbrio fisiológico anterior à vivência de ameaça. As síndromes relacionadas ao evento traumático seriam, então, o resultado da incapacidade do corpo de retornar ao funcionamento fisiológico anterior.

Assim, o trauma estaria mais relacionado ao sujeito e não necessariamente ao evento e seria modulado por fatores individuais como genética, qualidade do suporte social precoce e status de saúde mental no momento da vivência estressante, justificando, pelo menos em parte, porque algumas pessoas adoecem diante de eventos traumáticos e outras não. Essa abordagem abre uma perspectiva de intervenção com estratégias para regular precocemente o SNA, principalmente às custas da estimulação do sistema nervoso parassimpático (por exemplo: práticas de ioga, técnicas respiratórias e outras práticas contemplativas e de relaxamento).

O aumento do conhecimento relacionado ao trauma permitiu, além disso, o desenvolvimento de algumas técnicas especificas para abordagem terapêutica. Como exemplo, o Eye Movement Dessenssitation and Reprocessing (EMDR) (Schmalzl, Crane-Godreau, & Payne, 2014) e o Brainspotting (Grand, 2013). Estas técnicas se baseiam na teoria de que o trauma é fruto do mal processamento das memórias traumáticas pelas vias cerebrais.  Essas memórias não seriam “digeridas” e integradas normalmente pelo cérebro e, em decorrência do intenso grau de sofrimento que mobilizam, permaneceriam vívidas e recorrentes, desencadeando toda a cadeia de sintomas de medo e evitação típicos dos  traumas psicológicos. O EMDR e o Brainspotting, se propõem a reprocessar e facilitar e integração das memórias traumáticas e têm sido consideradas altamente eficientes e, segundo a Organização Mundial da Saúde, são terapias de primeira linha para abordagem de TEA e TEPT em crianças, adolescentes e adultos (WHO, 2013).

Todas essas perspectivas neurobiológicas das síndromes relacionadas ao choque compartilham entre si a importância do bom funcionamento fisiológico dos processos complexos de autorregulação interna, especialmente as relacionadas ao sistema nervoso autônomo e ao processamento das memórias aversivas e traumáticas.

Do ponto de vista prático, contar com apoio psicossocial na comunidade para o enfrentamento da crise e manter uma boa rotina de descanso, sono e higiene mental são importantes para a regulação biológica e ativação dos fatores que promovem a resiliência às vivências adversas.

Um grupo populacional bastante exposto ao cenário da COVID 19 são os profissionais de saúde. Submetidos meses a fio a condições de trabalho de grande estresse físico e mental, o que facilita o esgotamento dos recursos fisiológicos de manutenção do equilíbrio interno. Por exemplo, a rotina pesada, a tensão persistente, o medo de contaminarem seus familiares e a falta de sono, estimulam a ativação constante do sistema nervoso autônomo simpático (SNS) e a consequente liberação de hormônios do estresse.

Em contrapartida, nesse contexto adverso, o sistema nervoso parassimpático (SNP), essencial para manter a regulação do SNA e o equilíbrio fisiológico global, fica pouco ativado. O uso de luvas, máscaras e escudos faciais pelos profissionais da saúde acabam dificultando o engajamento nas relações interpessoais por meio das expressões faciais e da fala, mecanismos tão importantes para a ativação do SNP. Esse distanciamento físico e neurobiológico entre estes profissionais e seus pacientes torna a rotina assistencial muito cansativa e desgastante, dificultando a conexão empática entre equipe e paciente e vulnerabilizando os profissionais ao burnout e síndromes traumáticas (Porges, 2007).

Por estarem intensamente engajados no cumprimento das medidas de proteção à infecção, e mesmo sentindo o impacto sobre a saúde mental, os trabalhadores da saúde acabam deixando suas questões psicológicas para segundo plano. Culturalmente, têm dificuldade em reconhecer seus limites, seu sofrimento e pedir ajuda. É muito comum observar trabalhadores visivelmente cansados, esgotados e estressados, mas que negam sua condição e dizem que dão conta, e que está “tudo bem”.

Pensando no cuidado de quem cuida da saúde dos outros, abordagens eficientes passam, necessariamente, pela melhora das condições de trabalho e pela busca ativa dos sujeitos em estado de sofrimento mental, especialmente pelos serviços de saúde do trabalhador.  Não se pode somente aguardar que os profissionais busquem ajuda voluntariamente porque, como dito, eles pouco o fazem. Isso pode retardar a detecção do adoecimento e agravar o ônus associado a esta condição. O bem estar desses profissionais é essencial para a qualidade da assistência aos acometidos pela COVID-19. Por isso, ações voltadas ao apoio e cuidado de saúde destes profissionais deve estar entre as prioridades dos planos gerais de enfrentamento da pandemia. Essas ações devem ser flexíveis, criativas de modo a permitir o treinamento de profissionais não especialistas, ampliando ao máximo o alcance das ações efetivas e reduzindo barreiras e preconceitos em relação à saúde mental.

Este deve ser um esforço conjunto para enfrentar uma crise sem precedentes, mas que, com ações inovadoras, coordenadas sem abrir mão do conhecimento científico disponível, conseguirá vencer o desafio de proteger e cuidar daqueles que mais precisam.

Créditos da Imagem: Freepik

Referências bibliográficas:

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Veja também: 

Autor

  • Carla Regina Silva

    Docente do Departamento de Terapia Ocupacional e do Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional (UFSCar). PhD em Perspectiva Crítica Decolonial em Terapia Ocupacional pela Universitat Central de Catalunya, Espanha.

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