Autoria: Yago Barreto Bezerra

Descrição da obra: O conto descreve, em primeira pessoa, as experiências confusas de um ser isolado, cujo fio que o liga ao outro acha-se fragilizado, desgastado.

Expressão: Literatura

 

 

CONTO DE QUARENTENA
(PRÉVIA)

 

Ei… por entre o espelho… estás aí? Esta é minha última chance de comunicar-me — quiçá. Não há nada para contar? O que vem após o niilismo? O ultra-niilismo? Perdemos a capacidade da comoção pelas grandes histórias? As grandes histórias foram dissolvidas? Eu sou um resultado deste processo de desencantamento humano? Estamos nos confins de nossa experiência conjunta? É aqui que os séculos acabam? E então, volvemos ao início?

Leitor, estás aí? Estou por acaso do outro lado do espelho — peço desculpas. Por que peço desculpas? Hábito talvez. O tempo, leitor — seria o tempo? —, vem-me engolindo, suprimindo, ou que quer que seja. Há um vácuo, que parece imenso, infinito, entre nós dois. Que história, portanto, há de se contar? Talvez ainda seja possível… diminuir o abismo. É incerto.

Hoje sinto-me outra pessoa, uma pessoa distinta da que fui dois meses atrás, algo um tanto mais seco e um tanto mais livre. Mas não sei se a liberdade é boa. Não me acho mais feliz agora, o que não me surpreende. Acho-me contraditoriamente suprimido. Tu entendes, leitora, a sensação que me perfaz? Sou isto, esta supressão de mim mesmo, há muito tempo? Hoje chove, mas o hoje não é importante. Chove por detrás das cortinas de meu quarto, e a chuva faz barulho. Talvez eu queira morrer. Sou fraco por pensar esta hipótese?

Insinuo-me a ti, leitor, como uma serpente. Não sou mais do que isto, porque não posso ser mais do que isto — é o que creio. Que horas são? Não há importância também; finjo ser madrugada, e o fingimento é o que será. Na madrugada estou no apogeu de minha falsa solidão. Os outros humanos chegam até mim apenas pelos objetos ao meu entorno. Pois é certo que alguém construiu o notebook, a cama, o celular, os fones de ouvido, o ventilador…, o próprio quarto que uso. Outros humanos plantaram a comida que como. Sem o trabalho de outras mãos não posso estar aqui, em minha madrugada fingida, em minha desconexão frágil. Que pretendo, afinal? Que querem os homens e mulheres de minha geração?

Igualdade? Justiça social? Sobreviver à loucura e transformá-la numa loucura melhor? À sua frente, leitor, o que vês, além da tua imagem, é uma alucinação, e esta alucinação sou eu. Estou dentro do espelho, atrás de sua superfície; consegues ver-me? Faça um esforço, leitor, ouve este meu derradeiro chamado. Tu olhas à frente e pergunta: “sobre que é esta história?”. Esta história é sobre uma conversa, a nossa, precisamente, leitor. Intento que me sinta; algo apenas, não mais do que isto. Tu mergulhas no espelho, leitor? Ouve-me?

conto de quarentena – Yago Barreto

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