Autoria: Guilherme Brasil
Descrição da obra: A crônica conta sobre o encontro entre vizinhos cantores e vizinhos confinados nos primeiros meses da quarentena e sobre como a arte é necessária e, em verdade, inevitável.
Expressão: Literatura
COMO A CHUVA
A quarentena tem suas vantagens. Pelo menos a autoestima do meu sofá nunca esteve tão em alta (às vezes faço até carinho nele, e juraria que me sorri de volta, por entre as almofadas). Mas aí me lembro porque estamos confinados, quão obscuro é o futuro e como as coisas podem dar muito errado ou muito certo, sem que tenhamos muito controle sobre isso. Nesse momento, quando o peito aperta e a janela da minha cabeça parece que se fecha, me lembro de uma frase boa pra esses tempos: um dia de cada vez. Paro. Respiro. Observo: estou limpo, seguro e alimentado (até demais, devo confessar), então o sol volta à brilhar, mesmo que por entre as nuvens. Viver um dia após o outro é saber agradecer pelo que se tem de bom, pelo que se pode fazer de bom também ou simplesmente por poder respirar sem precisar de um aparelho que está em falta…
Mas existem também boas surpresas nestes dias, e uma delas aconteceu ontem. Estava eu conversando com meu querido sofá quando ouvi uma música vindo de fora. Não era dos vizinhos, não era da janela, não era elétrica: era voz de gente, moradores de outro canto do edifício, cantando quase na minha porta. E cantavam Gil, tão bonito, como há tempos não ouvia. Ficamos, a patroa e eu, ali, parados, observando a escada do nosso andar escoando a música que alguém resolveu fazer pra gente que nunca viu.
– Quando eu crescer quero cantar assim também, gritei, depois que terminaram.
Fato é que quando a canção acabou eu me sentia iluminado. Que poder tem a música, que poder tem a Arte! Aliás ontem, contando umas vantagens, petulantemente me intitulei artista. Com a devida vênia, confesso hoje: cabe recurso. Simplifico, não sou artista porque a Arte (pra mim) não é matéria, é estado, não se é, só se está. Vejo a Arte como uma grande nuvem mágica, que paira por aí e às vezes se conecta com os seres humanos, permitindo que eles lhe solidifiquem um pedacinho. Para isso é fundamental que o ser humano se prepare pra recebê-la (Arte dá trabalho!), mas quando ela vem, é implacável, indisfarçável, assim como a chuva. Por mais que se feche a janela, você vê a enxurrada, escuta e até sente seu cheiro. E no fim a água acaba lavando a tudo que toca, chão, telha, gente, bicho, todos, por um instante, comungam daquele elemento. Depois que vai, deixa aquela umidade luminosa no ar, como o orvalho da memória de um momento bom. Carregar esse fardo, ser a própria chuva, é impossível. Mas às vezes (e é bem de vez em quando mesmo), somos a canaleta por onde a Arte escorre. Que ela continue garoando sobre nós e que nós a respinguemos pelo mundo, pra que juntos esperemos essa tempestade passar.