A curva epidêmica logarítmica dos casos acumulados da COVID-19 no Brasil ainda é ascendente. Entretanto, nota-se que a mesma tende a uma inclinação leve, indicando um ritmo de crescimento não muito acelerado. Ao mesmo tempo, as curvas de novos casos e de novas mortes tendem a um platô, apontando para uma estabilização do quantitativo de casos e de mortes por COVID-19 registrados diariamente. Não obstante, um platô de elevada morbimortalidade (Figura 1).

Curva epidêmica de casos e mortes por COVID-19 no Brasil, até 25/08/2020

Situação parecida é observada no Estado de São Paulo e na cidade de São Carlos, SP. (Figuras 2 e 3).

Curva epidêmica de casos e mortes por COVID-19 no estado de São Paulo, até 25/08/2020

Curva epidêmica de casos e mortes por COVID-19 na cidade de São Carlos, SP, até 25/08/2020

Considerando que a vigilância epidemiológica não faz busca ativa nem rastreamento sistemático de contactantes, que há limitação quantitativa da testagem diagnóstica [1] [2], e é grande a subnotificação [3] [4], uma hipótese para os achados acima pode ser a saturação da capacidade de detecção de novos casos. Desse modo, é possível que, mesmo que o número de novos casos diários continue aumentando, a contagem se limita ao máximo que se consegue contar, configurando um platô, quando na realidade seria uma inclinação ascendente.

Por outro lado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) sugere vários indicadores para o acompanhamento da curva epidêmica da COVID-19. Entre eles, destacam-se a proporção de testes positivos em relação ao total de testes [(Número de testes positivos x 100)/Total de testes realizados] e o inverso desta função, que é a razão do total de testes sobre o número de testes positivos (Total de testes realizados/Total de testes positivos). Indica-se que os testes contabilizados para esses cálculos sejam RT-CR [5] [6].
.
Nesse sentido, a proporção de testes positivos abaixo de 5% e a razão entre o total de testes e o número de testes positivos acima de 10:1 nas últimas duas semanas são indicadores de que a epidemia pode estar sob controle [5] [6]. No exemplo de São Carlos, SP, a média da proporção de testes positivos foi de 33,69% e a razão do total de testes sobre o número de testes positivos foi de 5:1 nas últimas duas semanas, agravado pelo fato de estarem computados também testes não RT-PCR (FONTE: Boletim de casos COVID-19 em São Carlos).

Tomando-se a razão do total de testes sobre o número de testes positivos como um indicador relacionado ao controle da epidemia, é possível adotá-lo como um dos marcadores da resposta à mesma. No caso de São Carlos, notou-se que, no início da pandemia, quando a incidência da COVID-19 era menor e o isolamento social maior, a resposta e o controle foram satisfatórios. Com a queda do isolamento social e o aumento acumulado da incidência, essa capacidade de resposta e controle declinou (Figura 4).

Razão de total de testes positivos para COVID-19 em São Carlos, SP, até 25/08/2020

Pelo exposto, é possível que a ausência de busca ativa de novos casos, aliada à limitação quantitativa da testagem diagnóstica e à subnotificação, tenha definido um teto à capacidade de detecção de novos casos. Se o número de novos casos diários ultrapassar este teto, cria-se um artefato na curva epidêmica caracterizado por um platô persistente, o qual é definido pelo limite da capacidade diária de detecção de novos casos. Ou seja, ainda que o número de novos casos diários continue crescendo, o quantitativo que aparece nos registros estaciona no limite da capacidade de detecção. Se esta capacidade se mantém, o número de novos casos diários que são registrados se estabiliza e a curva se conforma num platô. Neste caso, uma queda na capacidade de detecção pode desenhar um declínio falso na curva do número diário de novos casos da doença. Por outro lado, um aumento nessa capacidade pode corrigir o formato da curva para um modelo mais verdadeiro. Portanto, para confirmar ou refutar a veracidade da curva epidêmica é necessário aumentar a capacidade de detecção de novos casos diários. Se, frente a um aumento nesta capacidade, a curva não se tornar ascendente, a estabilização do número de novos casos diários é verdadeira.

Pelo o que foi demonstrado, é possível supor que a estabilização das curvas de novos casos e mortes por COVID-19 seja um artefato induzido pela saturação da capacidade de detecção de novos casos e, portanto, pode não estar traduzindo a realidade epidemiológica.

Por outro prisma, à medida que a epidemia avança, reduz-se o número de pessoas suscetíveis e, consequentemente, a taxa de disseminação espacial da doença. Aliada à um nível relativamente estável do isolamento social, esta queda na taxa de disseminação espacial pode determinar uma saturação contingencial da transmissibilidade, o que pode ser assumido como outra hipótese para justificar a estabilização das curvas de novos casos e de mortes pela COVID-19.

Nesse sentido, esta saturação contingencial pode ser traduzida como efeito da correlação inversa entre o Número de Novos Casos diários da COVID-19 (NNC) e o produto da Prevalência de Imunizados (PI) pela média da Taxa de Isolamento Social (TIS), esquematicamente representado pela seguinte conotação:

Se considerarmos que a prevalência de imunizados está aumentando e a taxa de isolamento social vem se mantendo a partir de um nadir superior ao da rotina normal, é possível que haja, pelo menos, uma estabilização do número de novos casos diários da COVID-19. Com o acúmulo da prevalência de imunizados ao longo do tempo, naturalmente a curva epidêmica cairá. Até lá, é importante manter ou aumentar a taxa do isolamento social e aumentar a capacidade da vigilância epidemiológica. Dessa forma, faz-se o bloqueio focal imediato e converte-se a transmissão comunitária em concentrada como alternativas para o controle epidemiológico da COVID-19 e o declínio da curva epidêmica, antes do alcance da imunidade coletiva.

É possível que as duas hipóteses levantadas estejam influenciando, juntas, o formato da curva epidêmica em platô do número de novos casos e de mortes pela COVID-19. Ou seja, supõe-se que, ao mesmo tempo em que há uma limitação da capacidade de detecção, há também uma saturação contingencial da transmissibilidade.

Por este motivo, acredita-se que ou a curva esteja realmente em platô, porém, o nível do platô está subestimado; ou a curva esteja ascendente, mas em um ritmo pouco acelerado conforme sugerem as curvas logarítmicas. De qualquer modo, significa epidemia não contida, isto é, não controlada e com probabilidade de estar em ascensão não percebida.

O platô estabelecido está em um nível elevado de incidência e de mortalidade, vulnerável a novas ascensões na curva epidêmica e com acúmulo persistente de casos e de mortes ao longo do tempo. Conclui-se que ainda é necessário melhorar a capacidade de detecção de novos casos por meio de busca ativa e rastreamento de contatos com ampliação da testagem diagnóstica para melhor conhecimento da epidemia, bem como investir em isolamento social e melhorar a eficácia e a eficiência das medidas de isolamento de infectados e quarentena de contactantes para tentar declinar a curva epidêmica.

Se mantida como está, é possível supor que o mesmo tempo que a epidemia levou para chegar ao platô – ou mais – poderá ser necessário para iniciar o declínio da curva por via natural à custa da imunidade coletiva. Flexibilizar o isolamento social sem ampliação da capacidade de resposta da vigilância epidemiológica, poderá agravar uma nova ascensão da curva epidêmica.

 

Referências:
[1] Brasil. Ministério da Saúde. Coronavírus. Covid-19. Guia de Vigilância Epidemiológica. Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional pela Doença pelo Coronavírus 2019. Vigilância Integrada de Síndromes Respiratórias Agudas. Doença pelo Coronavírus 2019, Influenza e outros vírus respiratórios, 03/04/2020. Disponível em: <https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/biblioteca/guia-de-vigilancia-epidemiologica-emergencia-de-saude-publica-de-importancia-nacional/> Acesso em 26 ago. 2020.

[2] ___. Secretaria Executiva (SE), Secretaria de Atenção Especializada à Saúde (SAES), Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS), Secretaria de Vigilância em Saúde
(SVS), Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) e Secretaria Especial de
Saúde Indígena (SESAI). Coranvírus. Covid-19. Orientações para manejo de pacientes com Covid-19.
Disponível em: < https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/June/18/Covid19-Orientac–o–esManejoPacientes.pdf> Acesso em 16 ago. 2020.

[3] Fundação Oswaldo Cruz.Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. Os dados invisíveis da Covid-19.
Disponível em: < http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/os-dados-invisiveis-da-covid-19> Acesso em 26 ago. 2020.

[4] ___. O que dizem os números? Disponível em: < http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/o-que-dizem-os-numeros> Acesso em 26 ago. 2020.

[5] Organização Mundial da Saúde. Organização Panamericana da Saúde. Critérios de saúde pública para ajustar as medidas sociais e de saúde pública no contexto da
doença causada pelo novo coronavírus (COVID-19). Anexo às Considerações sobre o ajuste de medidas sociais e de saúde pública no contexto da doença causada pelo
novo coronavírus (COVID-19), 12 de maio de 2020.
Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52178/OPASWBRACOVID1920066_por.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em 25 ago. 2020.

[6] Moreno AC, Vieira B, Tito F, Manzano F, Marques P.Menos da metade dos testes de Covid-19 do Brasil permite saber se vírus está ativo no organismo. 21/08/2020
13h45. G1 e TV Globo.
Disponível em: < https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/08/21/menos-da-metade-dos-testes-de-covid-19-do-brasil-permite-saber-se-virus-estaativo-no-organismo.ghtml> Acesso em 26 ago. 2020.

 

Créditos da imagem: Freepik no Freepik

Veja também:

Autor

  • Bernardino Geraldo Alves Souto

    Médico generalista pela Universidade Federal de Juiz de Fora, MG, Mestre em Medicina (Medicina Tropical) e Doutor em Medicina/Ciências da Saúde (Infectologia e Medicina Tropical) pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-doutorado em Microbiologia e Infecção pela Universidade do Minho (Portugal).Também é especialista em Medicina Intensiva pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira, em Clínica Médica/Medicina Interna pela Sociedade Brasileira de Clínica Médica e em Epidemiologia em Serviços de Saúde pela UFMG. Na Universidade Federal de São Carlos, é Professor Associado no Curso de Medicina, líder do Grupo de Pesquisa Clínica e Epidemiológica Aplicada em Ciências da Saúde e docente no Programa de Pós-graduação em Gestão da Clínica. Atua especialmente em medicina geral integral, epidemiologia, doenças infecciosas(HIV/AIDS), medicina intensiva, clínica médica, vigilância em saúde, infecção hospitalar, educação médica e gestão pública de saúde. Supervisor de equipe no grupo de Pesquisa Baseada em Bioinformática Integrando Evolução, Biologia e Medicina, do domínio de microbiologia e infecção do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde da Escola de Medicina da Universidade do Minho, em Braga, Portugal

    View all posts

Deixe um comentário