Autoria: Renato Passos de Barros

Descrição da obra: Em tempos de pandemia, no Hospital Regional de Samambaia (periferia de Brasília), a perspectiva metódica/neurótica de um narrador-personagem com transtorno obsessivo-compulsivo, conduz o leitor às sutilezas do machismo em comportamentos, pensamentos, falas e atitudes presentes nas relações interpessoais de trabalho. Além dessa temática central, o conto “Classificação de risco” também apresenta um recorte metonímico do comportamento de profissionais de saúde nas primeiras semanas de isolamento social durante o combate ao coronavírus no Distrito Federal.

Expressão: Literatura

 

Classificação de risco

Comprei um espelho de dois metros e coloquei no meu quarto não porque sou vaidoso. É uma questão prática: verificar, rapidamente, se está tudo em ordem antes de sair. Bem… não é tão rápido assim, considerando que, antes de abrir a porta da sala, retorno ao espelho inúmeras vezes. Bom… voltando ao espelho… verificação: sapatos pretos devidamente engraxados e lustrados – ok; meia social preta – ok; calça jeans preta, devidamente lavada e passada – ok; carteira e celular no bolso direito da calça preta – ok; relógio no pulso esquerdo – ok; camisa branca social de botão, devidamente limpa e passada (uso por dentro da calça) – ok; crachá preso ao bolso da camisa (em letras garrafais): PEDRO ROCHA FIRMINO NETO – ok; óculos 5 graus de miopia, armação preta grande – ok; cabelo preto curto liso, partido ao meio (do tipo “a vaca lambeu”) – ok; máscara cirúrgica – ok; luvas de látex cano longo –ok. Mas, antes de sair, faltava verificar também se tudo no apartamento estava no lugar: cozinha, quartos, sala, varanda – nem um cisco, sequer, de poeira. Tudo limpo, tudo no lugar, tudo brilhando, do jeito que minha
mãe gostava.

São cinco horas da manhã. A caminhada do meu apartamento até a passarela da Octogonal leva uns quinze minutos. As quadras do Cruzeiro estão desertas. Nesse horário, sempre estiveram, mesmo antes da quarentena. Mas antes, pelo menos, havia alguns aposentados passeando com seus respectivos cachorros. Hoje, nem isso. Passo por detrás do Terraço. Aqui também sempre esteve vazio nesse horário. Mas agora, dentro desse contexto, o Terraço Shopping parece um antigo castelo europeu atacado pela guerra e, daí, abandonado. Finalmente chego na parada de ônibus.

O ônibus que me deixa em frente ao hospital da Samambaia às 6:50 passa aqui na parada lá pras seis da manhã, quando não atrasa. O importante é que ele sempre chega antes das sete no HRSAM. Por todo o trajeto, passando pelo SIA, pegando a EPTG, Centro de Taguatinga até virar na Samambaia, fui o único passageiro, sentado no último banco do corredor do lado do cobrador. Cheguei. O hospital também está vazio, quase tanto quanto o ônibus.

Trabalho, há três semanas, no NUREM – Núcleo de Registro de Matrículas, abrindo o prontuário eletrônico de todos os pacientes que dão entrada no HRSAM. Tanto os da Emergência quanto os do Ambulatório. Meu Plantão rende o plantonista noturno do dia  anterior. Na falta dele, improvisado estava na ocupação o responsável por toda gestão da unidade hospitalar nas últimas doze horas: o volumoso senhor Nabucodonosor do Plantão Administrativo. Entrei na sala cuja proteção anti-paciente é um grosso e enorme vidro transparente. Seu Nabuco não me deu bom dia, retirou a máscara descartável e já foi logo
disparando as informações necessárias, enquanto olhava pra baixo e vestia sua apertada jaqueta jeans: _Está atrasado. “Eu nunca me atraso”, respondi só no pensamento, olhando para o relógio. _ Clínica Médica tá normal. Tem três médico escalado. Pediatria também. Cirurgia tá fechada desde ontem à noite: dois baleado, um esfaqueado. “Parece que a guerra não é contra a Pandemia. Continua sendo contra a criminalidade.” Pensei enquanto me despedia do meu antecessor: “Bom descanso, Seu Nabuco.” Saiu de cabeça baixa sem me responder.
Sopro o café do copinho enquanto contemplo o hospital vazio de gente. Olho o relógio: 6:56. Em frente o NUREM, fica o Plantão Policial e um policial de plantão dedando celular das sete às dezenove horas, alheio a tudo ao seu redor. Isso mesmo. Nas últimas três semanas, nenhuma intercorrência policial no hospital que demandasse a sua interferência. No relógio: 7:00. Acesso o computador. Retiro a senha do Nabucão e coloco a minha. Dou uma olhada nas notícias da internet, desisto. Daí que, no tédio do meu silêncio, uma voz feminina abre a porta com força.
_Bom dia, gaieiro! Só pra avisar que a Classificação de Risco já tá funcionando. Então depois que fizer a ficha, você já encaminha o paciente pra lá, tá bom? De boca meio aberta, balanço a cabeça positivamente. É a mulher mais linda que eu já vi na minha vida.
_Tem café aí? “Tem sim. Fica à vontade”. _Odeio esse café da Sanoli. Tem gosto de remédio. Pelo menos, é forte e quase sem açúcar. “Gaieiro?…” Perguntei com um semblante simpático.

Ela estava apoiada com os cotovelos no balcão de atendimento, empinando ainda mais a enorme bunda redonda e já empinada (que, mesmo com o jaleco, era possível perceber) e tomando o café. Esbanjando sensualidade até quando cumprimenta, de longe, o policial de plantão, depois, voltou-se para mim. _É… no caso você que faz GAE. Agora olhando pra cima, como se quisesse lembrar do que a sigla significa e enumerando nos dedos, como uma criança do quinto ano, os três nomes: _ Guia de Atendimento Emergencial. Quem faz GAE é gaieiro.

Naquele momento, ela não usava a máscara cirúrgica recomendada. Abriu um lindo sorriso branco me derretendo e me deixando ainda mais sem forças. Ela. A mais bela das índias. Muito mais linda que Iracema. A pele lisa e morena, os olhinhos puxados, os seios fartos e empinados feitos de silicone natural de quem nunca amamentou sequer um mameluco qualquer. Os longos cabelos negros que escorriam até a sua fina cintura refletiam o brilho da luz. Com os quadris largos, as coxas grossas de marombeira e a escandalosa bunda enorme (já mencionada anteriormente) anunciava a todos os machos sua perfeita predisposição a ser futura mãe de filhos saudáveis.

Janaína, a enfermeira da Triagem, percebeu que eu escaneava, repetidas vezes, as suas formas gostosas e não me interrompeu. Ela adorava ser adorada. Quando viu que, tão cedo, eu não ia parar de babar, se aproximou, pegou no meu crachá para ler meu nome (pude sentir seus dedos encostados no meu peito e as pontas dos seus cabelos deitando na minha perna). _Você é o… Pedro Rocha. Você é novato aqui, não é? “Estou lotado aqui há três semanas. Vim do Setor de Licitações” _ Ah tá. Então é por isso. Estou voltando de férias hoje. Bom… Prazer em te conhecer, gaieiro novato. Estendendo a mão
de luva branca para mim. _Meu nome é Janaína. “Eu sei. Li no seu jaleco”. Respondi de forma tímida e sem graça. O prazer, até o fnal deste plantão e de todos os outros plantões será todo meu: queria ter respondido. “Você trabalha na Triagem?” _Não é triagem. É Classificação de Risco.

Repetição: nos plantões que completaram a quarta semana. O mesmo espelho. A mesma verificação. Ok para mim. Ok para a casa (será que um dia Janaína vai visitar meu apartamento?). O mesmo trajeto até a parada de ônibus . A mesma paisagem. O horário do ônibus também é o mesmo. Ônibus, motorista e cobrador: sempre mais do mesmo. Sempre a mesma mesmice me estagnando numa zona de conforto.

O único ineditismo era a minha amizade com Janaína, evoluindo cada vez mais. Nos plantões, a gente combinava de almoçar juntos. Fizemos um esforço de negociação com nossos chefes e troca com nossos colegas para coincidir todos os nossos plantões do mês seguinte. Amizade e cumplicidade. Mas isso não fazia parte da minha zona de conforto.

Percebi que Janaína não era tão perfeita assim. Seus comentários sobre os moradores de Samambaia que buscavam atendimento me causavam angústia, náusea, nojo. _ Ah, meu amigo!… Toda segunda feira era assim: o dia do atestado. O PS lotado de cachaceiro de ressaca atrás de atestado. Agora? Com essa porra de coronavírus, olha só? Vazio. O cagaço é maior. Tão vazio quanto jogo da Seleção em dia de Copa do Mundo. É como se as doenças soubessem do calendário da Copa ou da pandemia. Que dirá na segunda-feira “pó-semana santa”!… Em outra ocasião: _Já trabalhei na Obstetrícia… Ah!… Os médicos odeiam mães escandalosas que gritam, xingam, esperneiam. Ora… na hora de fazer não tava gostoso? Foda, gozo e cigarro aceso. Agora na hora de ganhar o filho, aguenta, porra!

Num dos almoços, talvez do último plantão do mês de abril, Janaína aparentava estar mais ansiosa. E essa ansiedade era refletida em seu prato: uma montanha de arroz e feijão cada vez maior. Ela sorria pra mim sem graça: _Eu como igual peão, né? Como você consegue se manter assim… magrinho? “Tenho uma bicicleta ergométrica em casa. Pedalo todos os dias e faço quinhentos polichinelos” _Então você não malha em academia. “Não. Nunca gostei. Mesmo antes da pandemia… malho sempre em casa.”. No início, achei que ela estava gostando de mim. Mas depois, percebi que nossa amizade era conveniente pra ela ficar à vontade, falar do seu noivo e mostrar as fotos do celular dela, exclusivamente, para mim. Morria de medo da inveja de suas amigas. O seu noivo: Fabiano Mercadendelli. Médico intensivista, trabalhando, atualmente, na Itália. Jovem. Bonito. Corpo atlético. Sósia do Luan Santana. Os dois, nas fotos, formam um belo casal. Um casal perfeito. Não é só o prato. Ela também come como um pedreiro: velocidade, voracidade, gula. _Me passa o sal. “O Fabiano melhorou?” _Ele ainda precisa
de respiração mecânica. Doença desgraçada! Mas, se Deus quiser, vai melhorar e sair dessa com vida. O meu Amor. Meu Herói, se preocupa tanto com os outros…” As lágrimas temperaram a montanha de arroz que será desfeita. Não, Janaína. O seu noivo não vai se recuperar. Davi mandou Urias para a guerra e ordenou que os soldados o deixassem morrer. Deus vai fazer a mesma coisa com o seu noivo porque Deus escreve certo por linhas tortas! Mas isso não é um plano perverso para
você chorar no meu peito a futura morte de seu noivo. Não. Você ainda vai sofrer outras frustações amorosas nas mãos de outros médicos. Daí, só mais tarde… talvez já tarde demais, quando estiver gorda igual uma baleia e cansar de ser rejeitada pelos seus próximos namorados, você vai perceber quem sempre esteve do seu lado, quem sempre deu valor em você. Então não serei mais o amigo confidente. Nunca mais! Você vai me classificar como possível pretendente. Talvez o único. Não
agora. Num futuro ainda distante. Nossa história ainda vai render inúmeros plantões, Janaína. “Toma o sal”.

Autor

Deixe um comentário