Autoria: Andressa Barichello

Descrição da obra: A máscara se tornou um item obrigatório no dia a dia. É preciso ser resiliente e aceitá-la, como forma de solidariedade. Quantas histórias esse novo item de uso cotidiano poderá ainda inspirar?

Expressão: Literatura

 

CÉU LIMITE

 

Não é fácil ser um menino e usar a máscara, por mais que os pais tenham caprichado no modelo: os aviões em tom de amarelo e contornos em preto, o fundo azul, hélices e turbinas quase entre nuvens. Terá sido ele próprio a escolher?

No rosto do menino há um céu tripulado; a alegria das aeronaves cheias; o traçado do lúdico e a tristeza do combustível queimado, toda a contradição de que somos feitos ou com a qual temos vivido…

No coração do menino também, eu suponho. O olhar talvez assim insinue. Enquanto os bebês sorriem para estranhos mascarados como eu, os mais crescidos compartilham o ar abafado da contrariedade. Não parecem sentir medo como alguns adultos, mas transparecem o enfado, que é de todos. E pensar que em menina ensinaram-se a fazer com as mãos uma concha e respirar dentro dela, como forma de encontrar alguma calma… De que serve hoje o ar morno?

O dia a dia anda chato e há sempre alguém a dizer que não se pode reclamar, o que torna as coisas mais difíceis… Se, por um lado, é verdade que as queixas servem de pouco, a sua total ausência seria das piores coisas que poderiam nos acontecer. Sem a insatisfação e alguma hipótese de colocá-la em palavras, é improvável que tivéssemos saúde.

Bem sei que o menino só espera que as coisas voltem a ser como eram, e que esse é também o meu desejo e o da maioria, mas também sei que, no fundo, essa vontade é apenas fruto de uma sensação de impotência para mudarmos efetivamente as coisas; diante do planeta, parecemos crianças a cumprir ordens, gente sem autoridade para querer outra coisa, saciados pelo costume, indiferentes à maquina, de mãos dadas com o que nos protege e, ao mesmo tempo, nos limita.

Diante do menino e sua máscara, senti a circunstancialidade de tudo; a vida como um grande voo do qual somos passageiros. Da segunda classe. A sonhar com a primeira… Sem percebermos que é também por causa dela que a maioria vai tão espremida.

Enquanto isso, diante de seu reflexo numa vidraça, o menino se distrai; ou será que se concentra?

Como vasculhasse no espelho as espinhas que ainda não tem, aperta um dos aviões com a ponta do indicador. E como aquilo fosse um botão de ligar algo em si mesmo, abre bem os braços, transformando-os em asas; a sonorizar as turbinas curva as pernas, deixando de olhar para o detalhe e se concentrando no todo da própria decolagem.

Apesar de toda chatice, às vezes há um respiro leve e fresco nisso de atravessarmos os dias tão ensimesmados.

Autor

Deixe um comentário