Autoria: Thiago Emanuel.

Descrição da obra: A obra mostra o ponto de vista de um coveiro, cujo trabalho aumentou durante a pandemia. Ele se perde na urgência de terminar aquele que será o último trabalho do dia, vagando por pensamentos a respeito de pessoas e situações. Sem se atravessar, reproduz uma ação mecânica que trata o ser humano como um produto, desvelando camadas de opressor e oprimido que habitam todos nós.

Expressão: Literatura.

 

Prévia Caronte

É tarde e a noite quase cai.

Gostaria de começar esse texto falando sobre mãos macias, mas não. Eram mãos duras. Casca grossa. Encorpadas por história. Quanto mais grossa, mais história tem a mão. Imagine então essas que estavam calejadas. Da vida, daqueles movimentos repetitivos, do não pesar.

Seu trabalho nunca fora fácil, mas ultimamente estava pior. Era a pandemia. O trabalho tinha quintuplicado.

Fonte segura, deu no zap.

Estava marcado para acontecer às 18h, mas o atraso superava trinta minutos e cinquenta e sete segundos.

Cinquenta e oito, cinquenta e nove. Trinta e um minutos.

Sem sinal no celular, só conseguiria ver o resultado do jogo do Flamengo depois que acabasse, quando voltasse para casa.

Odeio quando berram! Parecem porcos. Ah, a feijoada com laranja.

Era o ingrediente secreto daquela feijoada que todo mundo adorava.

Essa, só minha nega que faz.

O que seriam dessa vez? Questionou-se. Crentes, católicos ou macumbeiros? Para ele, os crentes eram os piores.

Choram muito, se descabelam! Medo de não ter dado tempo de pedir perdão. Medo do inferno.

Com os católicos, o problema era a liturgia.

Ô troço chato! Parecem repetir eternamente o calvário de Cristo.

Uma vez quase pegou no sono durante um enterro católico. Detestava o fato de levarem horas para fazer algo que poderia durar poucos minutos. Já pensou? Cochilar e acordar dentro do buraco? Tá amarrado!

Os macumbeiros eram os melhores.

Não que eu goste de macumba, minha Nossa Senhora da Conceição! Mas é porque são mais calados, mais contidos. Dependendo da cor da linha, tem até tambor.

Os pardais subiram o tom de seu canto, ficaram mais agudos. Começaram a voar baixo. Era estranho aparecerem naquela época do ano.

O pesado portão se abriu. O inconfundível ranger das dobradiças já soava como um choro.

Ou só ferrugem mesmo, não entendo a necessidade de colocar sentido em tudo.

As pessoas começaram a chegar, vinham em passadas muito lentas, cabeças baixas.

Devem ser macumbeiros.

Fitou um a um. Por causa da pandemia, poucos eram permitidos.

Lá vinha ele, o caixão. O signo que indicava o início do trabalho. Suas mãos reagiam de forma automática. Já sabiam o que precisavam fazer. Só naquele sábado, foram quatro pessoas que ele conduziu à escuridão profunda. E o músculo das costas começava a arder.

Que não seja obeso.

As melhores eram as crianças, embora sempre achasse isso triste. E preocupante. Pelos poucos familiares, julgou que devia ser alguém magro.

Ufa!

Só pensava naquela feijoada com uma cervejinha bem gelada.

Estalando!

Quatro mulheres carregavam o caixão e o puseram ao lado de duas cordas.

Ligeiras, quem diria… ao menos dessa vez seria rápido!

De repente, começou a vir lá longe uma senhorinha. Movia-se com dificuldade, era apoiada por uma bicha preta.

Odeio bichas pretas. Se já é preto, seja ao menos homem!

Mas e aí, dá pra ser ou tá difícil? Vamos baixar o presunto ou não?

A senhora se aproximou, ainda escorada pela bicha.

Que agora está me olhando… eita porra! Não se dá ao respeito nem no meio de um enterro. Mas se pingar vinte conto, nunca se sabe. Deixo até mamar porque morto eu que não tô.

Um outro senhor se aproximou e pediu para levantar a tampa do caixão. A senhora precisava se despedir.

Eita que tá difícil despachar esse!

A cena seria tocante. Se ele se importasse. O caixão foi aberto e revelou uma bela jovem, por detrás de um branco véu que cobria seu corpo. Ela descansaria em meio a margaridas. A senhorinha a admirou de forma serena, revelava o olhar acima da máscara. E acenou. Estava um pouco ofegante, como se tivesse chegado de algum outro lugar, temendo pela possibilidade de não conseguir se despedir. O caixão fora novamente tampado.

Bora trabalhar!

Ainda não. O senhor que abrira o caixão ainda tinha algumas coisas a acrescentar. Nem conseguiu escutar sobre o que falava. Parecia que era uma pessoa muito boa. Todos são. Que certamente iria para o céu. Enquanto o senhor falava, algumas pessoas começaram a chorar.

Católicos, com certeza!

Depois do discurso, veio o silêncio. A despedida final. Dava pra sentir quando ela acontecia. Isso sempre acontecia. Seja crente, seja católico, seja macumbeiro. Pairava no ar. O verbo se fazia carne por um breve instante. Isso ainda o surpreendia, mesmo já tendo feito aquilo várias vezes.

Pegaram as cordas e começaram a baixar com cuidado para não sacudir a morta. Isso incomodava aos viventes.

Quanto ao morto… bom, está morto.

A prisão de madeira tocou o solo. Ali seria o lar definitivo daquela bela jovem. Deitada eternamente em cova esplêndida.

Puxou as cordas, passou a mão na enchada e começou a devolver a jovem ao pó. Foi quando a bicha preta irrompeu em lágrimas. Aquilo o incomodou.

Bastou começar a fazer o trabalho pesado para ela se soltar. Estava contida até agora. Será que é pessoal?

A bicha abaixou, encheu as duas mãos com um punhado de terra e jogou na cova. Ainda chorava.

Nossa, que bela ajuda! Na próxima vez, lembra de trazer uma enchada!

Em lágrimas, foram saindo aos poucos. Ele ficava sozinho para concluir seu trabalho. Finalmente poderia ir para casa. Será que teve gol do Gabigol?

O último serviço do dia estava concluído. Quatro corpos, nenhum atravessamento. A empatia se perdia naquela relação que era basicamente trabalhista. Ainda assim, mesmo blindado de qualquer sensação, algo o perturbava. Era uma pergunta, que anos depois permanecia sem resposta: por que choram?

Quero dizer, por que realmente choram?

Seria apenas pela perda de alguém querido? Ou seria por que aquela perda lhe lembrava de algo inevitável?

Vocês são os próximos.

 

Caronte – Thiago Emanuel

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