No âmbito da saúde pública nacional, a Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009, do Ministério da Saúde, dispõe sobre os direitos e deveres das usuárias da saúde, entre eles o direito ao uso do nome social (BRASIL, 2009). Já a Nota Técnica nº 18, de 24 de setembro de 2014, do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS), orienta gestoras e operadoras do Sistema de Cadastramento de Usuários do Sistema Único de Saúde (CADSUS) a como proceder no preenchimento dos campos nome civil, nome social e sexo (BRASIL, 2014).

No caso de pessoas trans**, deve constar no Cartão Nacional de Saúde (Cartão SUS) o nome social, data de nascimento, número do cartão e código de barras, sendo que os campos nome civil e sexo devem ser omitidos. Os dados completos da usuária serão mantidos na base de dados do Cartão Nacional de Saúde e no código de barras, evitando que pessoas trans sejam constrangidas e expostas à situação vexatória. Nesse sentido, não se trata de uma opção acatar ou não o uso do nome social nas instâncias de atendimento à população civil, mas garantir a cidadania e o direito por nós conquistado.

Segundo o Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016, é assegurado o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas transexuais e travestis no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional (BRASIL, 2016).

No Estado de São Paulo, o Decreto Estadual nº 55.588/10, dispõe sobre o tratamento nominal das pessoas transexuais e travestis nos órgãos públicos do Estado de São Paulo e dá providências correlatas. Este Decreto assegura às pessoas transexuais e travestis o direito à escolha de tratamento nominal nos atos e procedimentos promovidos no âmbito da administração direta e indireta do estado de São Paulo. Mediante indicação da pessoa, seu nome social deverá constar em todos os documentos, fichas, formulários e crachás, devendo as servidoras públicas tratá-la pelo nome indicado (SÃO PAULO, 2010).

A Instrução da Unidade Central de Recursos Humanos (UCRH) nº 10, de 1º de setembro de 2014, normatiza que a elaboração de crachás de acesso e demais documentos de identificação funcional dos servidores da administração direta e indireta devem ser elaborados com a utilização do prenome social que a servidora interessada indicar, correspondente à forma pela qual se reconhece, é identificada, reconhecida e denominada por sua comunidade e em sua inserção social (SÃO PAULO, 2014).

No âmbito educacional, a Deliberação do Conselho Estadual de Educação (CEE) n° 125/2014, dispõe sobre a inclusão do nome social nos registros escolares das instituições públicas e privadas no Sistema de Ensino do Estado de São Paulo e dá outras providências correlatas. O CEE determina que as instituições vinculadas ao Sistema de Ensino do Estado de São Paulo, em respeito à cidadania, aos direitos humanos, à diversidade, ao pluralismo e à dignidade humana, incluirão, a pedido das interessadas, além do nome civil, o nome social de transexuais e travestis nos registros escolares internos. Fica estabelecido que o nome social deverá ser usual na forma de tratamento e acompanhar o nome civil nos registros e documentos escolares internos. No caso de alunas menores de idade, é necessária a autorização expressa dos responsáveis legais.

Nessa direção, apresento, de modo didático-pedagógico, certos esclarecimentos acerca do uso do nome social na vida cotidiana e do contato entre pessoas trans e pessoas cis***, , associados a dicas civilizatórias para o exercício de uma boa convivência e respeito à cidadania da população transgênero, transexual e travesti.

Beabá

Cisgênero: pessoa nascida menina/o e que socialmente desempenha um papel de comum acordo a esta imposição, aquela/e que se identifica com o gênero atribuído ao nascer. Uma pessoa cis não é trans. Em uma discussão sobre temática trans, diferenciaríamos mulheres trans e mulheres que não são trans dizendo mulheres trans e mulheres cis.

Identidade de gênero: é a percepção íntima que uma pessoa tem de si como sendo do gênero masculino, feminino ou em algum lugar do espectro entre os dois. A identidade traduz o entendimento que a pessoa tem sobre ela mesma, como ela se descreve e deseja ser reconhecida.

Nome civil ou de registro: nome de uma pessoa trans dado por suas responsáveis em seu nascimento e lavrado em sua certidão de nascimento. Nome no qual ela/e/u não escolheu segundo sua identidade de gênero. Também conhecido como nome de batismo, nome de nascimento, nome antigo, nome morto, etc.

Nome retificado: nome social que passa a ser nome civil, ou seja, dá retificação/alteração em cartório da certidão de nascimento, e, posteriormente, dos demais documentos de identificação.

Nome social: nome de uma pessoa trans escolhido por ela/e/u segundo sua identidade de gênero, que melhor lhe agrada e lhe faz sentir confortável. Nome social, pois se refere ao uso do nome em âmbito social, preservando seu nome civil.

Transexual: termo similar a transgênero no sentido de que indica uma desobediência entre a identidade de gênero e o papel social atribuído ao nascer. Termo higienista cunhado pela ciência médica em meados das décadas de 80-90, pois implicaria uma “transição” hormonal/cirúrgica, referindo-se violentamente as travestis. No imaginário social brasileiro, a mulher transexual é a travesti que parece mulher (cis) e que deseja ou já retirou o “pau”.

Transgênero: pessoa nascida menina/o e que socialmente desempenha um papel de desobediência a esta imposição, aquela/e/u que se identifica com outro gênero diferente do que lhe foi atribuído ao nascer. Termo contemporâneo e guarda-chuva que se refere a todas as pessoas e identidades trans, é visto pelo Movimento Nacional de Travestis também como um termo higienista.

Travesti: identidade política de resistência histórica. Atualmente, muitas meninas “transgênero e transexuais” se autoidentificam e se nomeiam travestis em reconhecimento ancestral da luta por direitos de nossas antepassadas – travestis, e em sua maioria preta. Afirmar-se travesti hoje, é preservar nossa história e ressignificar a travesti existente no imaginário social brasileiro, é dizer: nós travestis também somos sujeitas de direitos, produtoras de conhecimento, estamos em todos os espaços e lugares, inclusive na prostituição.

 

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Provimentos civilizatórios

  1. Na dúvida sobre como se referir à pessoa, seja no feminino, masculino ou neutro, pergunte: “Como você prefere que te chamem, ela, ele ou elu?” Dificilmente a pergunta será levada como invasiva, mas como um gesto de respeito, demonstrando que você está inteirado no assunto;
  2. Errou o pronome de tratamento? Não tenha medo, nem se acanhe: peça desculpas e corrija a sentença no ato do diálogo ou posteriormente. Isso faz de você uma pessoa delicada e afetivamente responsável;
  3. Em hipótese alguma pronuncie o nome de registro de uma pessoa trans se você a conhecia antes dela/e/u assumir um nome social;
  4. Quando você, por deslize ou de forma não proposital, comete o erro de chamar uma pessoa trans por seu nome morto, imediatamente corrija, se desculpe e tente ao máximo seguir o papo, não fique se lamentando. Isso não ajuda em nada, apenas aumenta o clima de tensão e faz com que a pessoa trans se sinta ainda mais constrangida;
  5. Você quer se referir, o que não é aconselhável, ao passado de uma pessoa trans, quando ela/e/u ainda usava seu nome de registro? Sem problemas! Use a criatividade e quando seria o momento de falar seu nome de batismo troque por: quando você ainda não se chamava […], quando você ainda usava […], quando você ainda se tratava no feminino/masculino etc. Aqui a regra é mais do que manifesta. É impossível não constranger uma pessoa trans ao expor o seu nome de registro, mesmo que você esteja sozinha com ela;
  6. Você conhece uma pessoa trans apenas pelo seu nome social, mas numa situação adversa ela encontra alguém do passado que lhe chama pelo seu nome antigo. Não expresse espanto do tipo: “Nossa! Nunca imaginei que você pudesse se chamar […]”;
  7. O nome de registro de uma pessoa trans, quando pronunciado e a depender do contexto, faz com que pessoas que não sabiam seu nome de registro passem a conhecê-lo, o que é tenebroso, pois o que mais queremos é que as pessoas se esqueçam dele;
  8. Não queira, por curiosidade ou qualquer outra vontade, conhecer o nome de nascimento de uma pessoa trans perguntando-a: “qual é seu o nome de verdade?” ou buscando descobrir em seus documentos pessoais e similares como ela/e/u se chamou. Tal investida fará de você um babaca, pois: qual a diferença em sua vida possuir ou não essa informação, que não a de poder ofender quando quiser a pessoa trans em questão?;
  9. Não adianta, na presença da pessoa trans, você respeitar seu nome social, mas em sua ausência você se referir a ela/e/u por seu nome de registro, ou mesmo com pronomes de tratamento distintos daquele que ela/e/u escolheu;
  10. Não existe lógica ou racionalidade, nem mesmo uma gênese para a escolha do nome social. Cuidado com as perguntas do porquê de seu nome social, ainda mais se for um nome não usual, incomum, ou difícil de pronunciar. Soa como que se tivéssemos que justificar algo e o que menos queremos é fornecer pareceres. Em raras exceções, a depender do contexto, do lugar, das pessoas, de sua intimidade e afinidade com a pessoa trans talvez não haja problema, a regra é ter sensibilidade;
  11. O problema do nome de registro é apenas do nome, pois ele demarca e circunscreve alguém que um dia existiu. Não é que deixamos de ser quem somos, mas deixamos para traz algumas coisas que, quando nosso nome de registro é pronunciado, nos leva a rememorar sem muitas vezes estarmos preparados/as/es para isso. São portas, lembranças e memórias dolorosas, sofridas, que, diariamente, tentamos/lutamos para esquecer, ressignificar, dando outros valores.

 

Design por Amanda Penetta

 

Você quer fazer alguma pergunta mais pessoal, de cunho da interioridade/subjetividade de uma pessoa trans? Então, primeiramente, se coloque no lugar dela: “eu me sentiria bem em responder uma pergunta dessa?” Mesmo que a resposta seja sim, se pergunte de novo, tentando assumir o local de fala/de vivência de uma pessoa trans e não com base em seus referenciais de pessoa cisgênero. A resposta ainda é sim? Então, pergunte à pessoa trans que você pretende fazer tal pergunta: “posso fazer uma pergunta mais pessoal?” Se ela/e/u autorizar, o faça. Ainda assim, balize suas palavras e controle a intensidade/profundidade da questão.

Ocorre que, geralmente, não existem quaisquer motivos para muitas das perguntas dirigidas às pessoas trans. Em sua maioria, não passam de meras curiosidades sem fim/fundamento algum. Sempre que você faz uma pergunta, você quer uma resposta e, muitas vezes, não a temos em definitivo. São apenas esboços dos muitos “caroços” relacionados às transgeneridades, transsexualidades e travestilidades. Novamente, é como se tivéssemos de justificar, dar uma gênese ao que somos.

O erro e/ou equívoco está no ato de você perguntar sobre nosso “eu”, nosso corpo, etc. enquanto pessoas trans, mas não perguntar o mesmo às pessoas cisgênero. Não existe uma gênese, um ponto de partida e/ou chegada para pessoas cisgênero, mas nós, pessoas trans, temos que inventar um. As lógicas não funcionam igualmente para ambos (cisgênero e trans). Se existe um DNA lésbico, gay, bi, trans… porque não existiria uma DNA cisgênero e hétero???

Você realiza perguntas como se nunca houvéssemos nos questionado sobre: “você gostaria de retirar seu pênis/sua mama?” São perguntas demasiadas complexas, emblemáticas e paradoxais, que nos fazemos sim, mas com certas barreiras para não “enlouquecermos”, pois a realidade para nós, pessoas trans, é outra. Ou você acredita que é apenas uma questão do querer? Expande-se a uma questão econômica, social, cultural e de política pública em saúde, educação, judicial, etc.

 

*Neste ensaio se assume a linguagem universal no feminino e/ou inclusiva.

**Refiro-me a pessoas transgênero, transexuais e travestis.

***Refiro-me a pessoas cisgênero.

 

Texto por

Uma Reis Sorrequia

Colaboração do Grupo Temático Diversidade e Cidadania

Amanda Lélis Angotti Azevedo

Andressa Soares Junqueira

Beatriz Barea Carvalho

Camila Felix Rossi

Carla Regina Silva

Carolina Serrati Moreno

Flávio Adriano Borges

Glieb Slywitch Filho

Jhonatan Vinicius de Sousa Dutra

Larissa Campagna Martini

Laura  Maria Brito de Araújo

Letícia de Paula Gomes

Natália Pressuto Pennachioni

Natália Sevilha Stofel

 

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009. Dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 ago. 2009. p. 80.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Nota Técnica nº 18, de 24 de setembro de 2014. Disponível em: http://www.blog.saude.gov.br/index.php/geral/34540-ministerio-da-saude-orienta-sobre-o-preenchimento-do-nome-social-no-cartao-sus. Acesso em: 29 out. 2020.

BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016. Dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 29 abr. 2016. p. 1.

SÃO PAULO. Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania. Secretário-Chefe da Casa Civil. Dispõe sobre o tratamento nominal das pessoas transexuais e travestis nos órgãos públicos do Estado de São Paulo e dá providências correlatas. Casa Civil, São Paulo, SP, 17 mar. 2010.

SÃO PAULO. Instrução UCRH nº 10, de 1º de setembro de 2014. Disponível em: http://vclipping.planejamento.sp.gov.br/Vclipping1/index.php/Instrução_UCRH_nº_10,_de_1º_de_setembro_de_2014. Acesso em: 29 out. 2020.

 

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Categoria: Diversidade e Cidadania
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Autor

  • Flávio Adriano Borges

    Docente Departamento de Enfermagem da UFSCar. Tutor da Liga Acadêmica de Diversidade em Saúde (LADieS) e trabalha a temática voltada à Atenção à Saúde da População LGBTQIA+.

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