Para Luciana Dadalto, a pandemia nos obrigou a falar sobre a morte, não a nos preparar para ela
A morte ainda é representada em nossa sociedade como “vilã”. Assim, pouco se fala sobre a temática, principalmente quando se trata da autonomia do paciente perante as escolhas de final de vida. Exemplo disso é a falta de conhecimento sobre as diretivas antecipadas de vontade (DAV), que expressam desejos relacionados aos cuidados de saúde.
O assunto chegou a pautar discussões nos primeiros meses da pandemia, mas logo voltou ao esquecimento. “A morte ainda é vista como algo distante que, no máximo, acontece com o vizinho”, avalia Luciana Dadalto, doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG e mestre em Direito Privado pela PUCMinas.
Administradora do portal Testamento Vital, em que escreve e orienta sobre DAV, Luciana sonha com uma sociedade que reconheça a morte como um fato natural e que respeite a autonomia do paciente, e explica a seguir por que estamos longe desse ideal.
O que são diretivas antecipadas de vontade (DAV)? Qual a diferença entre DAV e testamento vital?
As diretivas antecipadas de vontade são um gênero de documentos de manifestação prévia de vontade para cuidados de saúde, com o objetivo de serem usadas quando o paciente perder a capacidade decisória. O testamento vital é uma espécie de DAV e refere-se exclusivamente ao documento de manifestação prévia de vontade para cuidados em fim de vida. Mas, no Brasil, a resolução CFM 1995/2012 chama de DAV o testamento vital e isso causa muita confusão sobre esses conceitos.
Em que momento devemos fazer as DAV?
Assumindo que estamos falando de DAV para fim de vida, o ideal é que documentemos nossas vontades o mais cedo possível, pois não sabemos quando ficaremos gravemente doentes. As pessoas, em geral, associam fim de vida a doenças crônicas e progressivas, em que há tempo para manifestação de vontade após o diagnóstico, contudo, temos doenças e situações agudas que retiram nossa capacidade decisória sem aviso, como um AVC ou um trauma.
Como proceder quando não há abertura na família para conversar sobre as diretivas antecipadas de vontade?
Acredito que é preciso entender a razão dessa “não abertura”. Vale a pena tentar estratégias como filmes, livros e algo lúdico como o baralho “Cartas na Mesa”. Se mesmo após essas tentativas ainda não existir abertura, é recomendável encontrar uma pessoa de confiança ao menos para guardar o documento e se responsabilizar por apresentá-lo para a família quando for necessário.
Por que as DAV são tão importantes nos cuidados paliativos?
Porque os estudos nos mostram que mais de 90% das pessoas que morrem com doenças crônicas chegam ao fim de vida sem condições de manifestar vontade. Assim, o testamento vital tem a função de ser a nossa voz no momento em que não pudermos mais falar.

Na pandemia, percebemos que muitas pessoas passaram a ter interesse nas diretivas antecipadas de vontade. Como você analisa essa relação entre as DAV e a pandemia?
A pandemia escancarou a morte. De repente, a morte passou a fazer parte de todas as conversas e de todos os noticiários. Ademais, como a COVID-19 é uma doença infectocontagiosa, as pessoas passaram a perceber que podiam ser contaminadas e, eventualmente, desenvolver uma forma grave da doença. Assim, o fim de vida, que sempre pareceu distante, começou a ficar próximo. Mas hoje, depois de seis meses de pandemia, acho que esse aumento de interesse não é tão expressivo no Brasil e, em verdade, apesar de a pandemia ter nos obrigado a falar sobre morte, a morte ainda é vista como algo distante que, no máximo, acontece com o vizinho. As pessoas ainda estão vivendo como se fossem imortais. Tenho cada vez mais acreditado que a pandemia aproximou a sociedade da morte, mas afastou os indivíduos do tema. A morte virou números.
Quais os desafios para a efetivação das DAV no contexto brasileiro?
São muitos. Vivemos em uma sociedade que trata a morte como um tabu, que prioriza a vida biológica em detrimento da vida biográfica, que despreza a autonomia do paciente, quando este não está mais lúcido e que confunde cuidado com obstinação terapêutica. No âmbito da saúde, o paternalismo ainda é praxe, a distanásia ainda é entendida como a melhor prática e as DAV ainda são pouco compreendidas. No âmbito jurídico, ainda não temos lei específica, procedimentos detalhados, as nomenclaturas ainda geram confusão e a sacralidade da vida – conceito moral/religioso – ainda é dominante no Poder Judiciário. Além disso, inexistem políticas públicas relacionadas ao tema. Mas, olhando para trás, especialmente para os últimos 12 anos, vejo que já evoluímos muito e tenho esperanças de viver em um Brasil que reconheça a morte como um fato natural e reconheça que o verdadeiro cuidado em fim de vida é aquele que respeita a autonomia do paciente.

Entrevista elaborada por:
Esther Angélica Luiz Ferreira
Stefhanie Piovezan
Juliana Morais Menegussi
Tatiana Barbieri Bombarda
Crédito da Imagem: Jira no Rawpixel
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