No contexto da pandemia pela COVID-19, muitas informações vêm sendo produzidas. Entre elas, chamou nossa atenção a divulgação de artigos e notícias que sugerem associação entre a COVID-19 e alterações neurológicas, desde formas mais leves até mais graves, como Acidente Vascular Cerebral e encefalopatias. Neste texto, nossa intenção será fazer um breve levantamento de alguns desses estudos científicos para entendermos o que se sabe sobre essa relação.

A síndrome, ou seja, o conjunto de sinais e sintomas da COVID-19 é bastante variado. Em geral, cursa com febre e sintomas respiratórios, mas pode cursar com sintomas neurológicos em cerca de 30% dos pacientes. Dor de cabeça, tonturas, alterações visuais e alterações de consciência são os sintomas mais relatados. Em alguns casos, as manifestações neurológicas, como a perda de olfato e paladar, precedem os sintomas respiratórios.

Uma revisão de literatura sobre manifestações neurológicas e complicações da COVID-19 realizada a partir de observação de pacientes hospitalizados mostrou que dor de cabeça e tontura são os sintomas neurológicos mais comuns, seguidos de encefalopatia e delirium. As complicações mais graves observadas foram o Acidente Vascular Cerebral (AVC), síndrome de Guillian Barré, mielite aguda transversa e encefalite aguda. A perda de olfato é a manifestação mais comum de alteração do sistema nervoso periférico[1].

Outro artigo bastante citado foi publicado no JAMA Neurological e buscou saber quais são as manifestações neurológicas nos pacientes com COVID-19. Para isso, observaram 214 pacientes positivos para a COVID-19 hospitalizados na cidade de Wuhan entre janeiro e fevereiro de 2020. Sintomas neurológicos foram observados em 36,4% dos pacientes sem infecção severa e em 45,5% daqueles mais graves, segundo parâmetros respiratórios. As alterações relacionadas ao Sistema Nervoso Central (SNC) foram dor de cabeça (13,1%) e tontura (16,8%), além de outros sintomas, que também foram descritos mas não indicaram a frequência, como a perda de consciência, AVC, ataxia e epilepsia. As alterações relacionadas ao Sistema Nervoso Periférico (SNP) foram perda de paladar (5,6%), perda do olfato (5,1%), bem como alterações visuais e neuralgia. Também foram relatadas alterações do sistema músculo esquelético. Entretanto, os próprios pesquisadores consideram que o estudo apresenta muitas limitações e possíveis vieses, como o pequeno número amostral de pacientes hospitalizados, localizados em uma única cidade, e a partir do registro de relato de sintomas subjetivos[2].

Algumas hipóteses têm sido investigadas para tentar explicar como o SARs-COV-2 chega ao sistema nervoso. O Prof. Otávio Pontes-Neto, do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento, da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto (FMRP), reforça que já é conhecido pela ciência a potencial afinidade dos vírus da família coronavírus com o sistema nervoso, principalmente pelos nervos trigêmeo e olfatório. Para ele, isso poderia explicar as alterações de olfato e paladar observadas em pacientes com a COVID-19.

Nessa mesma linha, um artigo de pesquisadores chineses publicado na Front. Med em maio de 2020 considerou que as manifestações neurológicas descritas sugerem que o SARs-CoV-2 pode estar sendo subestimado como um patógeno do SNC. Baseado em estudos prévios que mostraram potencial de neuroinvasão de outros coronavírus que, em humanos, causam doenças respiratórias, os autores cogitam que após contato físico com a mucosa e órgãos do sistema respiratório ou da mucosa gastrointestinal, o SARs-CoV-2 pode induzir resposta inflamatória intrínseca e inata do sistema imunológico do hospedeiro, levando a um aumento intenso de citocinas e dano tecidual. Isso aumentaria a neuro susceptibilidade para a COVID-19, principalmente em condições de hipóxia causada por dano pulmonar. Em indivíduos imunocomprometidos, o vírus pode invadir o SNC por múltiplas rotas, pelos vasos sanguíneos e linfáticos ou pelos nervos periféricos. Nesse mesmo artigo os autores alertam que, portanto, adicionalmente ao tratamento farmacológico ou da medicina tradicional chinesa, precauções não farmacológicas, incluindo uso de máscaras e higiene das mãos, são fundamentais[3].

Relatos de caso também têm fornecido alguns achados. Em um estudo realizado em um serviço médico de Nova York e divulgado pela revista The New England Journal of Medicine, os pesquisadores relatam uma série de 5 casos de pacientes com menos de 50 anos que apresentaram manifestações neurológicas e alterações em exames de imagem compatíveis com quadro de AVC e que foram testados positivo para COVID-19. Os autores observam que, durante as 2 semanas que durou o estudo, houve um aumento expressivo da incidência usual de AVC para a idade. Sugerem, a partir de dados de outros estudos, que o SARs-CoV-2 pode causar dano ao endotélio vascular e aumentar a chance de formação de trombos. Relatam ainda que um dos casos recebeu terapia antiplaquetária e anticoagulação com bom resultado[4].

Outro caso foi relatado por pesquisadores do Departamento de radiologia de um serviço médico de Detroit, Estados Unidos. Trata-se de uma paciente ao final de seus 50 anos que apresentou sintomas respiratórios e alteração da consciência com testagem positiva para COVID-19. O exame do líquido cefalo-raquidiano foi inconclusivo para SARs-CoV-2, mas a ressonância de crânio mostrou lesões compatíveis com encefalopatia necrotizante aguda, uma rara complicação que pode ter causa viral[5].

Vale lembrar que relatos de casos são indicados para eventos raros, embora importantes, com o objetivo de explicar alguns fenômenos, fornecendo, portanto, evidências frágeis que geralmente precisam ser complementadas por outros estudos.
Uma revisão sistemática da literatura realizada por pesquisadores iranianos conclui que, por enquanto, as manifestações neurológicas da COVID-19 não têm sido estudadas apropriadamente, principalmente em pacientes com adoecimento severo e com manifestações que envolvem o SNC. Melhorar a precisão dos documentos que relatam sintomas neurológicos, os detalhes clínicos, neurológicos, e a investigação eletrofisiológica dos pacientes, assim como tentativas de isolar o SARs-COV-2 do líquor e autópsias das vítimas da COVID-19 poderão clarificar o papel do vírus como causador de manifestações neurológicas[6].

Fica claro para nós que os estudos e evidências trazidas, embora frágeis, podem sugerir associação entre a COVID-19 e alterações neurológicas. Melhorar o nível das evidências pode nos ajudar no diagnóstico sindrômico e no manejo da COVID-19. Vale lembrar que a COVID-19, na maior parte das vezes, irá se manifestar a partir de sintomas leves e inespecíficos ou até mesmo com a ausência de sintomas. Muito menos frequentes serão as manifestações mais graves. Entretanto, sabemos que, devido a sua capacidade de se disseminar rapidamente, pode atingir muitas pessoas e, assim, o número de doentes mais graves pode aumentar e provocar colapso dos sistemas de saúde, com aumento da letalidade por falta de acesso aos serviços hospitalares que não conseguirão fornecer tratamento de suporte para o paciente que precisa.

Assim, aqui no Brasil, como em outros países, há grande preocupação com a sobrecarga dos centros de serviços que atendem urgências e emergências médicas por pacientes com COVID-19. Tal quadro pode prejudicar o acesso de pacientes com suspeita de AVC ou outras doenças neurológicas graves que precisam ser atendidos nesses mesmos serviços e que também necessitam de leitos de internação ou UTI.

Soma-se a esse cenário o fato de que, segundo a organização não governamental Rede Brasil AVC, o número de atendimentos por suspeita de AVC reduziu em 60% nos hospitais desde o início da pandemia. Isso pode significar que muitos pacientes com sintomas sugestivos de AVC podem não estar procurando atendimento médico adequado, levando a um aumento significativo do risco de sequelas graves e irreversíveis, fato que precisará também ser comprovado por estudos.

Sabemos que a prevenção dos fatores de risco e o tratamento adequado das doenças crônicas associadas ao maior risco de AVC, podem evitar a ocorrência de boa parte dos casos, por isso é importante que pessoas com doenças crônicas sigam acompanhamento médico nos serviços de atenção primária à saúde e sejam monitorados por suas equipes de saúde.

Toda essa preocupação se baseia no fato de que o AVC é a segunda causa de morte no mundo e a primeira causa de incapacidade. Dada a alta prevalência do evento na população, é muito importante saber reconhecer seus sinais de alerta e providenciar rápido tratamento em serviços de urgência e emergência, visando diminuir mortalidade e o agravamento das sequelas.

Ao identificar os sinais de alerta, é necessário acionar o SAMU (Serviço de Atendimento Médico de Urgência) para o direcionamento do paciente ao serviço correto. Informe o máximo possível sobre as condições da pessoa com sinais que podem ser:

  • Fraqueza ou formigamento na face, no braço ou na perna, especialmente em um lado do corpo;
  • Confusão, alteração da fala ou compreensão;
  • Alteração na visão (em um ou ambos os olhos)
  • Alteração do equilíbrio, coordenação, tontura ou alteração no andar;
  • Dor de cabeça súbita, intensa, sem causa aparente.

Nesse momento, a fim de se evitar a contaminação pelo novo coronavírus, são necessários cuidados em relação à proteção da pessoa que vai ao serviço de saúde (pacientes, acompanhantes e familiares). Não deixe de usar máscaras, realizar higienização adequada e proceder com as demais precauções.

Sugere-se também não deixar de procurar os serviços de reabilitação caso haja sequelas causadas pela lesão neurológica. Equipes multiprofissionais para reabilitação são fundamentais para minimizar as sequelas. Há evidência robusta de que a busca rápida por assistência em casos dos sintomas citados mostra maiores chances de sobrevivência e menor número de sequelas. Mas, caso o paciente desenvolva sequelas, os serviços de reabilitação deverão ser iniciado o mais precocemente possível. Alguns serviços mantém atendimento presencial durante a pandemia, por se tratar de serviço essencial. Mas também poderão ser utilizadas outras modalidades de atendimento, como o teleatendimento.

Por fim, alertamos que alteração de força, da capacidade de fazer atividades, dificuldade de organização, problemas com a linguagem (fala e compreensão), capacidade visual, coordenação, dificuldade com seu autocuidado, sofrimento mental e outras mudanças podem ser sequelas neurológicas associadas ou não à COVID-19 e precisam ser avaliadas e tratadas adequadamente.

 

Referências:

[1] Ahmad, I., & Rathore, F. A. (2020). Neurological manifestations and complications of COVID-19: A literature review. Journal of clinical neuroscience : official journal of the Neurosurgical Society of Australasia, S0967-5868(20)31078-X. Advance online publication. https://doi.org/10.1016/j.jocn.2020.05.017

[2] Mao L, Jin H, Wang M, Hu Y, Chen S, He Q, Chang J, Hong C, Zhou Y, Wang D, Miao X, Li Y, Hu B. Neurologic Manifestations of Hospitalized Patients With Coronavirus Disease 2019 in Wuhan, China. JAMA Neurol. 2020 Apr 10. doi:10.1001/jamaneurol.2020.1127. [Epub ahead of print] [3] Li, Z., Liu, T., Yang, N. et al. Neurological manifestations of patients with COVID-19: potential routes of SARS-CoV-2 neuroinvasion from the periphery to the brain. Front. Med. (2020). https://doi.org/10.1007/s11684-020-0786-5.

[4] Oxley, T. J., Mocco, J., Majidi, S., Kellner, C. P., Shoirah, H., Singh, I. P., De Leacy, R. A., Shigematsu, T., Ladner, T. R., Yaeger, K. A., Skliut, M., Weinberger, J., Dangayach, N. S., Bederson, J. B., Tuhrim, S., & Fifi, J. T. (2020). Large-Vessel Stroke as a Presenting Feature of Covid-19 in the Young. The New England journal of medicine, 382(20), e60. https://doi.org/10.1056/NEJMc2009787

[5] POYIADJI, Neo; SHAHIN, Gassan; NOUJAIM, Daniel; STONE, Michael; PATEL, Suresh; GRIFFITH, Brent. COVID-19–associated Acute Hemorrhagic Necrotizing Encephalopathy: ct and mri features. : CT and MRI Features. Radiology, [s.l.], p. 201187, 31 mar. 2020. Radiological Society of North America (RSNA). http://dx.doi.org/10.1148/radiol.2020201187.

[6] Asadi-Pooya, A. A., & Simani, L. (2020). Central nervous system manifestations of COVID-19: A systematic review. Journal of the neurological sciences, 413, 116832. Advance online publication. https://doi.org/10.1016/j.jns.2020.116832.

Texto produzido pelo grupo de trabalho Cuidado sem Limites.

Créditos da imagem: Freepik no Freepik

Autor

  • Júlia Andreza Gorla

    Terapeuta Ocupacional pela Universidade Federal de São Carlos. Possui especialização em terapia de mão e membro superior pela UFSCar, mestrado em Ciência pelo Programa de Pós-graduação Interunidades em Bioengenharia (USP – São Carlos). Atualmente é doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Terapia Ocupacional da UFSCar

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