O grupo temático de Saúde Indígena do InformasSUS apresenta a terceira entrevista da série “De parente para parente”. Nesta série, indígenas buscam ouvir outros indígenas em suas vivências relacionadas à saúde do seu povo. Nesta entrevista, a estudante de graduação do curso de Educação Física, Vanusa Vieira Gomes, do povo Tupinikim, conversa com Rosângela Bento Carvalho, também do povo Tupinikim e agente indígena de saúde da Aldeia Irajá. A entrevista aconteceu no dia 30 de outubro de 2020, por meio de áudio via aplicativo de mensagens.
Por meio da entrevista foi possível ter acesso a um relato legítimo e técnico a respeito das alterações de rotina, vida e de trabalho ocasionados em decorrência da pandemia de COVID-19. Igualmente foi possível acessar as características da aplicação dos protocolos de saúde, abordando questões ligadas aos impactos da Sars-Cov 2 nos âmbitos da vida pessoal e profissional, principalmente a respeito dos desafios e dificuldades presentes desde o primeiro caso registrado. Ela detalhou ainda como se deram as orientações e as mobilizações necessárias no combate ao vírus implementadas no local.
A aldeia Irajá fica localizada em Aracruz, município do norte do Espírito Santo, que é o único município capixaba que possui aldeias indígenas. Atualmente são 07 aldeias Tupinikim e 5 Guarani. Na imagem é possível observar a localização das aldeias no município.
https://campismo.com.br/_CidadesC/ES-aracruz_i.htm?list=CAMPISMO
Os Tupinikim são, entre inúmeros povos indígenas, dos mais citados e paradoxalmente mais desconhecidos no Brasil. O termo tupiniquim tem sido utilizado como sinônimo de brasileiro na língua corrente (política tupiniquim, cinema tupiniquim, etc.), mas o emprego do termo pouco ajuda a desvelar a realidade de um povo específico que luta pela sua sobrevivência. Afinal, quem são os Tupinikim? (ISA, 2020)
O povo Tupinikim soma cerca de 2901 pessoas, pelos dados do sistema de informação da SESAI (2014). Habitam três Terras Indígenas no norte do Espírito Santo. Todas estas situam-se no município de Aracruz, próximas a essa cidade e também à de Santa Cruz e à Vila do Riacho. Foram um dos primeiros que tiveram contato com os não indígenas no período de colonização. Sendo assim, muito das violências enfrentadas no passado são refletidas nos dias de hoje. Um exemplo, é o fato de terem perdido a oralidade de sua língua nativa, pois os seus antepassados foram proibidos de falar, e assim interrompeu-se o aprendizado tradicional de geração em geração. Porém, atualmente, a partir da militância do movimento indígena e das políticas públicas que proporcionaram o ensino bilíngue nas escolas indígenas, tem havido a revitalização da língua Tupi, entrando como disciplina que é ministrada aos estudantes nas aldeias.
No entanto, mesmo sofrendo ataques ao longo de mais de quinhentos anos, os Tupinikim resistem, mantendo seus costumes e tradições, como a pesca no rio Piraqueaçu, a caça, o plantio de roças, a confecção de artesanatos, as danças (kurumins e guerreiros) e pintura corporal (ISA, 2020).
Nas palavras de Vanusa: “Continuaremos lutando, continuaremos resistindo. Somos povo guerreiro, sempre levando conosco as lembranças dos nossos antepassados. Sou indígena e tenho orgulho de ser Tupinikim”. Depois de ser entrevistada pelo Informasus-UFSCAR em setembro, Vanusa entrevistou Rosangela. A entrevista conferimos a seguir.
Vanusa: Olá Rosangela, você poderia se apresentar e contar onde você trabalha?
Rosangela: Bom dia, meu nome é Rosangela e eu sou moradora da aldeia Irajá. Sou da etnia Tupinikim, no município de Aracruz, Espírito Santo. Atuo na minha aldeia como agente indígena de saúde. Mas nas últimas semanas tenho percorrido todas as aldeias devido ao inquérito da COVID. Desenvolvo essa função de agente de saúde há quatro anos.
Vanusa: Conte um pouco sobre como foi o primeiro momento de impacto da pandemia COVID-19.
Rosangela: As primeiras notícias sobre o coronavírus foram muito assustadoras, mexeu muito com o psicológico da comunidade e também da equipe. O vírus é uma coisa invisível, não sabíamos onde estava e com quem estava. Foram feitas reuniões com a equipe de saúde, juntamente com o cacique e as lideranças foram tomadas as precauções necessárias, como colocar faixas nas entradas das aldeias proibindo a entrada de pessoas estranhas e de fora da aldeia. Como ainda havia circulação de algumas pessoas de fora da aldeia, foram colocadas porteiras nas principais entradas. Houve medidas concernentes ao nosso trabalho e naquele momento não podíamos mais entrar nas casas das pessoas, foi feito uma redução de visitas domiciliares. Entregávamos os remédios nas casa dos diabéticos e hipertensos. Para aquelas pessoas que tinham necessidade de procurar a unidade de saúde por outros motivos, o horário era marcado para evitar aglomerações. A comunidade se fechou. Andávamos e quase não víamos ninguém circulando nas ruas. Com as notícias da mídia sobre o coronavírus, a maioria das pessoas se conscientizou que havia necessidade de ficar dentro de casa.
Vanusa: E quais foram as orientações implicadas nos primeiros casos suspeitos de forma geral e como houve a conscientização por parte das famílias?
Rosangela: Tinha também os desobedientes. No primeiro caso suspeito a família foi resistente, provavelmente pelo medo ou até por preconceito, mas graças a Deus o resultado do exame foi negativo. Daí houve o aumento da demanda e quando apareciam pessoas com síndrome gripal precisávamos diagnosticar como caso suspeito. Não era uma notícia fácil para o paciente indígena receber, porque a partir daquele momento, ia ter que ficar em isolamento até o resultado do exame sair. Nas nossas visitas não podíamos tocar. Apertos de mãos e até mesmo os abraços não eram permitidos, devido às precauções que tinham de ser tomadas. Tanto para o paciente quanto para nós, equipe de saúde, foi difícil porque os idosos e as crianças têm um carinho enorme com a gente, mas era necessário, devido ao vírus estar circulando. Todas as medidas foram tomadas sobre como deveríamos agir mediante a pandemia. Houve uma redução na carga de trabalho. Não podíamos ter aglomeração de funcionários na unidade porque tinha acompanhantes que vinham da cidade. O que foi mais interessante é que a comunidade se conscientizou que havia necessidade de estarmos mais afastados deles, para não colocarmos ninguém em risco. Recebemos instruções concernentes ao uso de máscaras, o uso de álcool em gel, e os EPIs necessários para fazermos as nossas visitas. Dividiram a equipe para trabalhar por escala. Cada dia uma equipe trabalhava para evitar aglomerações. Trabalhamos em casa. Foram feitos alguns treinamentos online e a nossa ajuda maior vinha do cacique e de alguns empreendimentos que estão à nossa volta.
Vanusa: E como foi o papel do cacique nessa parceria com a equipe de saúde?
Rosangela: O papel do cacique e de algumas lideranças foi de muita ajuda e de muita importância para a equipe. Com a ajuda dele e da associação foram fornecidos os EPIs necessários. Forneceram para equipe pijamas cirúrgicos, para evitar contaminação na entrada e saída da unidade. Houve uma ajuda também por parte da associação para a compra de testes para alguns funcionários. Foi uma parceria de sucesso: cacique, liderança e equipe de saúde.
Vanusa: Você enquanto profissional, estando na linha de frente do combate à COVID-19, leva consigo qual sentimento ou ensinamento diante desse caos que estamos vivendo?
Rosângela: Me sinto muito feliz por poder ter ajudado a minha comunidade nesse momento difícil que o país passou e ainda está passando. Porém, sempre um tanto preocupada porque sou mãe, tenho netos, tenho uma senhora do grupo de risco. Minha preocupação sempre foi trazer o vírus para o meu lar. Infelizmente, minha filha mais velha contraiu o vírus, sendo a primeira indígena da minha aldeia a testar positivo para COVID. Esses momentos foram angustiantes, durante os 14 dias de isolamento, o vírus se apresentou de um modo agressivo e a minha preocupação redobrou bastante porque tinha um preconceito, e até mesmo discriminação sobre a doença na aldeia. As pessoas que eram colocadas como casos suspeitos passavam a ser vistas de modo diferente, e isso trazia muita preocupação para mim. Não tivemos esse problema porque eu moro em uma parte mais isolada. Mesmo tendo sido agressivo ela se saiu bem, foi curada e deu tudo certo. Ela foi bem assistida pela equipe de saúde também.
Outra nova experiência foi quando houve uma nova reunião para orientar que os funcionários tinham que se revezar para ir para a barreira sanitária, que era uma exigência do Ministério Público Federal porque a nossa aldeia é cortada por uma rodovia, então circulavam pessoas da cidade próxima da aldeia, de outras cidades e até mesmo de outros estados. A preocupação era que essas pessoas poderiam trazer riscos para a população indígena, com a disseminação do vírus na aldeia.
Também outra experiência que eu tive foi quando novamente foi feita a reunião para orientar que a equipe deveria fazer busca ativa. Nós percorríamos a aldeia procurando pacientes indígenas, de casa em casa, para aferir a temperatura e ver se eles apresentavam alguns sintomas do coronavírus, síndrome gripal.
E por fim, nós também fomos para o inquérito da COVID. Nós tínhamos que percorrer todas as aldeias com a maioria dos funcionários para colher o sangue dos indígenas acima de 2 anos até o mais velho, para diagnosticar se o indígena contraiu a COVID, sendo assintomático, e para descobrir se o organismo criou resistência ao vírus. O trabalho foi muito cansativo, mas gratificante. Era bonito ver a determinação de todos da Saúde Indígena aqui de Aracruz. Tivemos algumas reuniões, também participaram os estudantes da Universidade Federal do Espírito Santo para coleta do sangue, mas nada disso foi muito para a frente, aí nós indígenas tivemos que tomar a frente disso.
Fomos bem sucedidos no nosso trabalho, graças a Deus. Foi coletado o sangue, foram feitas as entrevistas com as pessoas de casa em casa, de aldeia a aldeia e estamos aguardando o resultado dos exames.
Hoje o sentimento que eu tenho, o aprendizado, foi que tudo isso valeu a pena. Valeu a pena cada esforço que eu fiz, juntamente com as equipes, juntamente com os meus colegas de trabalho. Às vezes era cansativo, houve várias frustrações, às vezes as coisas não davam certo, às vezes era muito corrido, cansativo para todos, mas foi gratificante. A forma como fomos atendidos nas casas foi muito boa. As pessoas não relutavam, mas sim aderiram à causa e às orientações que estávamos sendo cobradas a fazer.
Me sinto muito honrada. Essa é uma experiência que vou levar para o resto da minha vida. Não foi uma coisa simples, nós estávamos lidando com uma pandemia. Algo que nunca imaginei que fosse participar, trabalhando na saúde, na área da saúde. Mas fico feliz por essa experiência, que eu creio que vai passar de geração. Às vezes eu chamo as minhas netas e converso com elas, digo: “vocês gravem bem o ano de 2020, foi um ano em que o mundo parou e as pessoas tiveram que se isolar, as pessoas tinham que ficar guardadas dentro de casa, a gente se comunicava por olhar de longe, às vezes faltava um abraço e aperto de mão. E gesto, quando a gente ia na casa das pessoas já não podia mais, isso também foi uma questão que tivemos que aprender”.
E hoje, dentro da aldeia, está bem controlado. O vírus não está mais dentro da aldeia. E nós participamos, fizemos um esforço contínuo. No começo lidamos com lágrimas quando tinha algum caso suspeito, às vezes era estressante para nós como equipe. Mas são experiências que vão ficar guardadas.
Os sintomas da COVID-19 foram muito diferentes, mas todos os cuidados foram bem sucedidos. Alguns casos de coronavírus foram mais agressivos. Nos casos mais agressivos, onde a preocupação era maior, onde era preciso nos vestirmos com os EPI’s e irmos na casa dessas pessoas. Nós já tínhamos passado pela COVID-19, a maioria da equipe já havíamos adquirido o vírus, então já estávamos bem preparados para orientar os pacientes sobre o que eles deveriam fazer, como eles deveriam agir e a importância do cuidado deles no sentido de ficarem em isolamento, tanto das pessoas que eles amavam quanto as pessoas da aldeia. Havia pessoas desobedientes, mas, mesmo assim, foi feito um termo de responsabilidade e para aquela pessoa com o vírus era necessário assinar aquele termo de responsabilidade dizendo que ela deveria ficar isolada.
Eu só tenho que agradecer. Agradecer a Deus por ver que ninguém da comunidade veio a óbito. Como já comentei, quando havia aqueles casos mais agressivos, ficávamos preocupados. Mas, graças a Deus, ninguém veio a óbito. Então, eu tenho a dizer, sou plenamente grata a Deus, fico feliz por ter participado da pandemia. Isso vai ser um aprendizado para o resto da minha vida.
Agradecemos a participação da Rosângela com esse importante relato!
Referências
Povos Indígenas no Brasil. Povo Tupiniquim. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Tupiniquim
Mapa turístico de Aracruz. Disponível em https://campismo.com.br/_CidadesC/ES-aracruz_i.htm?list=CAMPISMO
Autores:
Vanusa Vieira Gomes
Guanilce F Soares
Vanessa Carneiro Borges
Revisão:
Larissa Campagna Martini
Willian Fernandes Luna
Créditos da imagem: Alex Pazzuelo no Fotos Públicas
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Entrevista excelente ! É maravilhosa a possibilidade de ter o relato sobre a experiência da covid por diferentes perspectivas ☺️💕💕 Parabéns pelo trabalho!