A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) realizou, de 22 a 28 de agosto de 2021, o acampamento Luta pela Vida, em Brasília, com o objetivo de lutar pelos direitos dos povos originários. O ato é considerado a maior mobilização na história dos povos indígenas, na Capital Federal, e reforça o grito: Nossa história não começa em 1988! (APIB, 2021a)

O acampamento contou com mais de sete mil indígenas, de todas as regiões do país, lutando pelo direito à vida e o direito de permanecer em seus territórios. A luta é em defesa dos seus corpos, terras e de territórios, da identidade e de culturas diferenciadas. É dizer à sociedade brasileira e internacional que a luta é em mobilização permanente em defesa da vida e da democracia. (APIB, 2021b)

A mobilização indígena é contra o PL 490 que determina que são terras indígenas apenas aquelas que estavam ocupadas em 05 de outubro de 1988.  Dessa forma, se tornaria necessária a comprovação de posse da terra a partir do dia da promulgação da Constituição, que é chamado de Marco Temporal. É uma ação inconstitucional e fere a existência dos povos originários. (CIMI, 2021)

O marco temporal negligencia as nossas histórias indígenas e ignora os povos que foram expulsos de suas terras sob violência, ou devido a expansão rural e urbana dos não indígenas, pelo desmatamento ou mortos por proliferação de doenças quando a constituição federal foi promulgada.

No Acampamento LUTA PELA VIDA, o movimento indígena ocupou as redes sociais, as ruas, as aldeias e Brasília para lutar contra a agenda racista e anti-indígena que está em curso.

Na tradição indígena, nunca houve a história de regulamentar quem é ou não é dono da terra, pois a relação com ela nunca foi de propriedade. A posse é coletiva tal qual é o usufruto. É esse o fundamento basilar de nossas existências, que a ignorância da cultura da dita civilização ocidental não entende, mesmo após 521 anos.

Nós, enquanto integrantes do PET Indígena Ações em Saúde – da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), estivemos no acampamento LUTA PELA VIDA em Brasília e relatamos abaixo um pouco de nossas experiências.

É uma experiência de muita emoção, pois estamos ali com diferentes povos, percebemos a dimensão da diversidade e a força de nossas culturas. Estamos ali todos conectados com nossas orações, cantos e danças. Nos preparamos para cada ato com grande organização, tudo com o objetivo de mostrar nossa presença, de dizer que somos contra tais ações vindas do governo e que seguimos resilientes nessa luta.

Nossos territórios são locais sagrados e que representam nossas identidades e muito de nossa história. Lutamos para manter nosso direito originário às terras que tradicionalmente protegemos. Se o projeto genocida for aprovado, muitos de nossos locais podem se perder para a abertura do agronegócio, da exploração de madeiras e nossos locais vão ser devastados. O Brasil como um todo vai sofrer, pois os locais com maior índice de preservação são nossos territórios hoje. Por isso, não ao marco temporal, não ao PL490. (Raniel Martinha de Souza, povo Ticuna e estudante do curso de medicina da UFSCar)

Raniel Martinha de Souza (imagem de arquivo pessoal)

Estar participando ativamente dentro do Acampamento Luta pela Vida e na ll Marcha das Mulheres me proporcionou uma das experiências mais intensas já vividas. As nossas vidas, costumes e territórios estão sendo ameaçados desde o Projeto de Lei 490 que prevê a revisão do usufruto exclusivo das terras pelos indígenas e inclui a participação dos estados e municípios envolvidos na área disputada. O nosso objetivo dentro do acampamento é defender nossas vidas e direitos, a diversidade étnica, oral e cultural de todo o Brasil marcou presença em uma semana de rituais, danças, apresentações, debates e manifestações nas principais avenidas de Brasília.

Essa luta não é só dos povos indígenas. As reservas naturais e toda a biodiversidade do país estão sendo negligenciadas pelo agronegócio, garimpeiros e grileiros com a invasão de terras. Precisamos que haja demarcação de territórios e respeito por todos os povos que vivem em solo sagrado de ancestralidade e resistência. Com o encerramento das atividades presenciais, seguimos resistindo e lutando pela equidade, por políticas públicas  e que, acima de tudo, atendam as especificidades dos povos originários do Brasil.” (Amanda Vitoria da Silva, povo Pankará, estudante do curso de Gerontologia da UFSCar)

Amanda Vitoria da Silva (imagem de arquivo pessoal)

Estar presente na maior mobilização nacional indígena pôde me proporcionar várias experiências, especialmente conhecer vários povos, várias realidades totalmente diferentes, lutando justamente todos pela mesma causa. Uma causa que não é só apenas de nós, povos originários, e sim uma luta pela nossa sobrevivência enquanto humanos. E com isso o tema do movimento traz em grande destaque “LUTA PELA VIDA” pois não é só lutar a favor de nossos direitos, mas sim é uma luta que envolve toda a humanidade.

A gente vem sofrendo muito com as mudanças climáticas devido aos desmatamentos em nossas florestas, em nossas terras indígenas, então estar presente e lutar juntamente com um todo coletivo me fez relembrar sobre meus antepassados, pois muitos deles, sem nenhuma ajuda financeira, estiveram sempre lutando para que hoje a gente pudesse chegar onde estamos.

Sabemos que a nossa luta não termina por aqui, pois ainda temos muito o que lutar, o que reivindicar, estamos apenas dando uma continuidade ao que todos nossos antepassados que morreram lutando iniciaram. Tivemos momentos no movimento de relembrar nomes de pessoas que morreram por nós em lutas a favor de todos nossos direitos. Eu me emocionei bastante ouvindo, mesmo sabendo do que já havia acontecido, nesses momentos. Bate aquele arrepio, aquela emoção, como um choro preso na garganta, colocando para fora. E é nesses momentos de lembranças que criamos mais forças para lutarmos, onde podemos nos fortalecer cada vez mais, de onde eles estiverem eles estão nos dando toda essa força juntamente com a força encantada, para que essa luta não acabe aqui. (Joelson Antonio de Jesus, povo Pankararu, estudante do curso de Licenciatura em Educação Especial da UFSCar).

Joelson Antônio de Jesus
(Imagem de Walisson Braga, 2021)

Durante a mobilização “Luta pela vida”, me passou um misto de sentimentos, dentre eles o medo pela PL 490 e o Marco Temporal passarem e serem aprovados, que na verdade  é um retrocesso na luta pela existência dos Povos Indígenas do Brasil, e o seu direito pela vida e existência.

Fui em um coletivo de 25 pessoas do povo Pankararu, no qual nos articulamos em um curto período de tempo, mas pudemos fazer presença no levante. A ida à Brasília era tensa, o medo nos rondava, porém seguimos na força de Deus e dos Encantados. Levantamos acampamento junto com os outros parentes, mas os povos indígenas de Pernambuco decidiram ficar juntos, o que fortalece ainda mais nossa organização.

O acampamento ficou dividido por subdivisões de organizações regionais, e a tenda principal onde ocorriam as mesas de discussão e plenárias. A subdivisão que meu povo Pankararu fica é de abrangência da Apoime, que articula os povos indígenas do Nordeste, Espírito Santos e Minas Gerais. Contou com uma equipe multidisciplinar, que assegurou a saúde e a segurança dos indígenas.

Durante a mobilização, fui eleita como coordenadora nacional de juventude indígena, junto com mais dois parentes, representando o Nordeste, Espírito Santo e Minas Gerais, e agora compomos a coordenação da Comissão Nacional de Juventude Indígena – CNJI.

A minha primeira experiência em um acampamento e levante nacional como esse foi de aprendizagem, conhecimento e descoberta. Pude conhecer a dimensão que é as mobilizações a nível nacional e agora poder trabalhar com elas. As amizades que fiz, levarei para a vida, e o meu sentimento de lutar pela existência dos povos indígenas só veio a aumentar e concretizar ainda mais a minha identidade como mulher indígena. (Gabriele Helena de Oliveira, povo Pankararu, estudante de Gerontologia da UFSCar)

(Gabriele Helena de Oliveira, imagem de arquivo pessoal)

 

A mobilização contou com duas marchas até a praça dos três poderes e ao Supremo Tribunal Federal (STF). O relator, Edson Fachin, defende que, segundo a Constituição, as terras são de posse permanente dos indígenas, cabendo a eles usufruir das riquezas do solo, rios e lagos de forma exclusiva, independente da data da demarcação. Já para o Ministro Nunes Marques, a derrubada do critério da data da promulgação da Constituição pode levar à expansão infinita das terras indígenas no país. Portanto, Marques seguiu a tese defendida pelos ruralistas e que prevê que nós, povos indígenas, só podemos reivindicar as terras que ocupávamos no dia 5 de outubro de 1988. Após seis sessões, o STF suspendeu o julgamento sobre a demarcação de terras indígenas, pois o Ministro Alexandre de Moraes pediu mais tempo para analisar o caso (G1, 2021).

Assim, ainda estamos sem previsão de término da discussão sobre o Marco Temporal e nós, povos indígenas, seguimos mobilizados para acompanhar o desfecho das votações. (ISA, 2021).

Dessa forma, a luta não é apenas para preservar a vida dos povos indígenas, mas da humanidade inteira, hoje gravemente ameaçada pela política de extermínio e devastação da Mãe Natureza, promovida pelas elites econômicas que herdaram a ganância do poder colonial, mercantilista e feudal expansionista. (APIB, 2021b).

A participação no movimento em Brasília nos fortaleceu enquanto jovens indígenas, universitários, demarcando que nossa história não começa em 1988, nossa história começa bem antes de 1500, bem antes já éramos resistência. Enquanto jovens indígenas, queremos levar essas experiências para os lugares onde estivermos, seja com os nossos povos, nas nossas comunidades e na comunidade universitária.

Como já diz a logo do movimento “Luta pela vida”, estamos todos juntos para lutar contra todo esse retrocesso que vem acontecendo com esse desgoverno, e em memória a todos nossos antepassados estamos à frente dessa luta para que possamos garantir nossos direitos.

 

Autores:

Raniel Martinha de Souza

Amanda Vitória da Silva

Joelson Antônio de Jesus

Gabriele Helena de Oliveira

(membros do PET Indígena Ações em Saúde – UFSCar)

 

Revisão:

Willian Fernandes Luna

(tutor do PET Indígena Ações em Saúde – UFSCar)

 

 

Referências:

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. APIB. 2021a. Luta pela vida. Disponível em: https://apiboficial.org/luta-pela-vida/

Manifesto Luta pela Vida. Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB. 2021b. Mobilização Nacional Indígena – MNI. PRIMAVERA INDÍGENA: mobilização permanente pela vida e democracia. Disponível em: https://apiboficial.org/2021/08/28/primavera-indigena-mobilizacao-permanente-pela-vida-e-democracia/

Conselho Indigenista Missionário. CIMI. PL 490: veja como votaram deputados e partidos na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Disponível em: https://cimi.org.br/2021/07/pl-490-como-votaram-deputados-partidos-comissao-constituicao-justica-camara/

APOINME. Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo. Disponível em: https://www.apoinme.org/

Instituto Socioambiental. Acampamento Luta pela Vida. Disponível em https://www.socioambiental.org/pt-br/tags/acampamento-luta-pela-vida

Portal G1. Globo. Marco temporal para demarcações: STF suspende julgamento a pedido de Alexandre de Moraes. Disponível em https://g1.globo.com/politica/ao-vivo/supremo-julgamento-marco-temporal-terras-indigenas.ghtml

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