O Projeto PermaneSer convidou o GT de Redução de Danos da UFSCar para falar um pouco sobre o uso de substâncias e prevenção de infecções sexualmente transmissíveis dentro da universidade. Entendemos que esse tema é muito importante como forma de estimular o cuidado de si próprio e de outros colegas, o que pode também influenciar na permanência estudantil.

Desde já agradecemos ao GT de Redução de Danos pela conteúdo! Segue o texto na íntegra.

Por que pensar em cuidado para uso de substâncias dentro da universidade?

O uso de substâncias psicoativas – isto é, substâncias que têm ação no Sistema Nervoso Central com alteração do estado de consciência – é um fenômeno disseminado em todas as sociedades, sendo presente, de diversas maneiras, em todos os períodos da história. Da mesma forma, o fenômeno das infecções sexualmente transmissíveis também não é restrito às pessoas que estão em uma universidade, nem mesmo é a mais comum. Então, por que pensar no cuidado dessas condições neste espaço que é a universidade? Especialmente, por que e como pensar no cuidado nos quatro campi da UFSCar?

Talvez, a primeira ideia que nos venha é que o ambiente universitário é dominado pelo uso de substâncias, com muitas pessoas com dependência e problemas com os seus usos, como dizem algumas “autoridades” públicas e parte da mídia. No entanto, na realidade, há pouco investimento para levantamentos amplas pesquisas sobre esse assunto tanto nas universidades brasileiras, como também para a população em geral.

O último levantamento feito em universidades brasileiras, o I Levantamento Nacional Sobre o Uso de Álcool, Tabaco e Outras Drogas entre Universitários das 27 Capitais Brasileiras, que ocorreu em 2010, mostrou que 48,7% das pessoas entrevistadas já tinham usado substâncias ilícitas pelo menos uma vez em algum momento de suas vidas. Se compararmos esses dados com um levantamento semelhante direcionado à população como um todo, o II Levantamento Domiciliar Sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, de 2005, 22,8% da população tinha usado alguma outra droga diferente do álcool e do tabaco, ou seja, o consumo de substâncias é realmente mais comum nas universidades, no entanto, ele causa mais problemas?

Para avaliar isso, podemos analisar o risco de desenvolver dependência em pessoas na universidade. Nessa mesma pesquisa feita nas universidades, as substâncias ilícitas que estavam relacionadas ao alto risco de causar dependência ou uso nocivo (aquele que pode causar perigo à vida, por exemplo) eram apenas a maconha (que tinha 0,4% de risco em mulheres e 0% em homens) e medicamentos tranquilizantes não prescritos (risco de 0,5% em mulheres e 0% em homens). As outras substâncias estavam apenas associadas ao risco moderado de causar dependência ou associadas ao uso nocivo numa prevalência sempre menor que 2% (exceto as anfetaminas, que tinham risco de 3%). Ou seja, a população universitária não é permeada por riscos grandes relacionados ao uso de substâncias, apesar de existirem. Se compararmos com a população entre 18 e 24 anos de acordo com o estudo de 2005, veremos que a “dependência” da maconha pelo critério utilizado na pesquisa chegava a 5,96%, isto é, bem acima da população universitária.

Mesmo assim, a universidade é um espaço que pode, de fato, estar relacionada aos usos mais frequentes de substâncias psicoativas, o que merece cuidado, pois esses usos, muita das vezes, estão relacionados aos espaços de festas e convivências que, em uma minoria de casos, pode levar aos usos nocivos ou à dependência, além de poder ocorrer acidentes.

Em relação às substâncias mais utilizadas, uma revisão bibliográfica sobre o uso de substâncias psicoativas em universitários brasileiros identificou que o álcool, o tabaco e a maconha são as drogas mais utilizadas por esse público, sendo o álcool a substância mais mencionada em todas as categorias de frequência de uso.

De toda forma, pelo fato de estarem muito relacionadas às experiências universitárias, é importante que pensemos em seus usos de uma forma não moralizada, pautando o cuidado de si e das pessoas próximas. Assim, uma forma interessante de pensar sobre essa questão é diferenciar os usos possíveis dessas substâncias, ressaltando que não há, necessariamente, uma escala de uso a partir da primeira experiência. Podemos fazer uma divisão dos tipos de uso de acordo com a frequência, por exemplo: uso experimental, uso esporádico, uso frequente. Também podemos pensar de acordo com a intensidade do uso: uso leve, uso moderado, uso pesado ou abusivo. Ainda poderíamos pensar sobre as motivações: uso para convivência, uso para recreação pessoal, uso para lidar com problemas (principalmente relacionados ao sofrimento individual ou coletivo). Pensar nesses diferentes usos pode nos ajudar a perceber qual é a característica que nós pertencemos e, daí, pensar em quais as formas de cuidado que podemos iniciar.

 

Design por Amanda Penetta

 

O que é a Redução de Danos e o que ela tem a ver com cuidado?

A Redução de Danos é um conjunto de políticas, práticas e reflexões que propõem uma abordagem alternativa para o uso de substâncias psicoativas: em vez da redução ou interrupção (abstinência) dos seus usos, essa prática visa a diminuição dos riscos e danos que advém delas. Essa abordagem entende, também, que não existe uso descontextualizado: todo indivíduo ocupa um lugar na estrutura social e partilha valores e significados com seu grupo social direto, assim, a relação  que cada indivíduo tem com as substâncias, sua experiência com esse uso e as suas variáveis do momento (os sentimentos da pessoa que usa; sua estrutura psicológica e física; as interações com outras substâncias e as características do ambiente – companhia, música etc.) são, portanto, perpassada para esses determinantes sociais.

Poderíamos pensar inclusive que, dentre as vulnerabilidades que influenciam como vão ser os tipos de uso, está também a questão da permanência estudantil na universidade. Isso porque as dificuldades enfrentadas nesse meio, as incertezas, as condições às vezes inadequadas à saúde e o próprio ambiente universitário como um lugar de opressões pode influenciar negativamente para os usos dessas substâncias, pois a universidade não é a cara do cuidado, é difícil pedir para que a mudança que leve ao cuidado comece apenas por parte dos estudantes . Tudo isso deve ser levado em consideração na avaliação de qual característica de uso pretendemos ter e aos cuidados que propomos levar a fim de reduzir esses riscos.

Uma importante forma de cuidar de si e dos outros colegas é acessar informações sobre as substâncias, por exemplo, antes de experimentar uma substância nova (ou acompanhar alguém que o esteja fazendo), o ideal é conhecê-la: quais são seus efeitos (tanto a curto prazo quanto em relação às horas após o uso)? Eu tenho meios para saber sua procedência? Além de atentar-se à dosagem e à interação com outras substâncias, já que isso é muito importante, especialmente em contexto de festas. É importante ressaltar também que dificilmente será possível definir com precisão sobre qual substância se trata, já que não há regulação formal sobre a qualidade das substâncias ilícitas, como há para as lícitas, como por exemplo: bebidas alcoólica têm rotulagem com composição e graduação alcoólica, já as substâncias ilícitas não têm esse tipo de informação de maneira confiável. Por isso, considerar essa questão já é importante para o uso dessas substâncias.

 Para além de conhecer as substâncias e poder fazer escolhas mais adequadas, a redução de danos propõe uma discussão mais aprofundada sobre os componentes éticos e políticos que permeiam o seu uso. Uma delas é a reflexão acerca da necessidade de pensar sobre o proibicionismo, isto é, o conjunto de políticas, ações e estratégias empregados no sentido de criminalizar a produção, o comércio e o uso de substâncias de modo direcionado às determinadas populações, legitimando a violência contra elas. É o caso, por exemplo, da violência policial contra as favelas (âmbito territorial); contra os pretos e pardos (âmbito racial) ou, mais amplamente, na América Latina, contra as populações de países como Colômbia.O proibicionismo, dessa forma, não passa da estratégia de legitimação da violência, pois não é segredo que o uso de substâncias e, principalmente, sua produção não diminua por causa dessa guerra às drogas.

Desse modo, a redução de danos propõe uma discussão ética e política que envolve lutar contra o racismo, contra a LGBTQIA+fobia, contra o machismo e  contra outras formas de discriminação e violência, ao mesmo tempo que posiciona todas as pessoas (e não só aquelas consideradas “depravadas”, “sem vergonha” ou “delinquentes”) como potencialmente expostas às substâncias psicoativas e, portanto, devem ter direitos assegurados, especialmente no âmbito da saúde e da assistência social. As práticas de redução de danos dizem respeito, portanto, ao fim da estigmatização sobre o uso de substâncias e à luta radical de direitos universais.

 

Design por Ana Paula de Lima

 

Então, como construir cuidado, a partir da redução de danos?

Além dos apontamentos já feitos no texto, indicaremos algumas possibilidades para pensarmos sobre o nosso cuidado em relação ao uso de substâncias.

Como dito, é especialmente relevante conhecer as substâncias que usamos e como podemos reduzir seus riscos, inclusive com as substâncias lícitas, como álcool e tabaco. De maneira geral, o uso moderado, acompanhado e com boa hidratação é benéfico! Mas há várias nuances sobre cada substância, por isso indicaremos alguns sites para saber mais sobre essa questão.

Essas e muitas outras indicações podem auxiliar em um uso mais seguro de substâncias. Além disso, para apoiar, também, em uma construção política sobre essa questão, tanto para quem usa quanto para quem não, há diversos grupos de estudos e cursos oferecidos sobre o tema. Nosso GT de Redução de Danos oferece grupos de estudo semestralmente e você pode participar no próximo! Além disso, o Coletivo RD Bauru (Acesse clicando aqui: Instagram) e o Coletivo Cai Junto Redução de Danos (acesse clicando aqui: Facabook) estão com um grupo de estudos rolando sobre esse tema.

Por fim, ressaltamos que todo uso de substâncias é um fenômeno complexo, permeado por condições sociais, culturais, individuais, institucionais, entre outras. Não devemos reduzir um fenômeno complexo a simples respostas simplórias ou imediatistas. A redução de danos propõe uma saída estruturada e bem construída para um problema cuja complexidade não deve ser ignorada. Esperamos ter contribuído com uma primeira visão ou até mesmo uma outra visão sobre o fenômeno dos usos de substâncias. Estamos disponíveis caso qualquer pessoa queira entrar em contato para participar de rodas de conversas, produções de conteúdo ou outros espaços formativos no grupo Redução de Danos.

Para entrar em contato com o Grupo de Trabalho de Redução de Danos da UFSCar, clique aqui: FacebookInstagramSite / Email

 

Referências:

1- II Levantamento Domiciliar Sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil: Estudo Envolvendo as 108 Maiores Cidades do País 2005, disponível clicando aqui.

2- I LEVANTAMENTO NACIONAL SOBRE O USO DE ÁLCOOL, TABACO E OUTRAS DROGAS ENTRE UNIVERSITÁRIOS DAS 27 CAPITAIS BRASILEIRAS, disponível clicando aqui.

3- Artigo “Uso de substâncias psicoativas entre universitários brasileiros: perfil epidemiológico, contextos de uso e limitações metodológicas dos estudos”, disponível clicando aqui.

Créditos da imagem: Grupo de Trabalho de Redução de Danos da UFSCar

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Autor

  • Daniel Galvão de Oliveira

    Graduando em medicina pela Universidade Federal de São Carlos, militante pelo SUS e membro do Grupo de Trabalho em Redução de Danos da UFSCar, Integrante do InformaSUS e do Projeto PermaneSer da UFSCar.

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