Com o avanço da pandemia da COVID-19, surgiu um novo cenário de incertezas nos contextos locais e global. A pandemia da COVID-19 revelou estruturas desiguais que favorecem tanto a distinção da disseminação do vírus e seus efeitos quanto o crescimento das desigualdades e iniquidades que estão relacionadas a: raça/cor, etnia, gênero, orientação sexual, classe social e deficiências (ABRASCO, 2020).
Há diferenças que devem ser consideradas ao se discutir a prevenção e o enfrentamento de diversos grupos sociais contra a pandemia da COVID-19. No caso das pessoas LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Intersexos e demais identidades e expressões da diversidade sexual e de gênero), a LGBTIfobia modifica e acentua o impacto da COVID-19 sobre a população LGBTI+, além de alterar a capacidade de proteção desse grupo em aspectos como: falhas na implementação de medidas de prevenção, desigualdades em saúde preexistentes que são potencializadas pela COVID-19 e dificuldades no acesso aos serviços de saúde.
Relações intrafamiliares e violência
As experiências vividas por pessoas LGBTI+ no âmbito familiar são produzidas a partir dos vínculos sociais das pessoas e que necessita levar em consideração alguns aspectos como raça, classe social, gênero e sexualidade.
Os conflitos familiares têm origem quando não há aceitação por parte dos parentes acerca da identidade de gênero e/ou orientação sexual ou quando há uma pressão para que essas pessoas se mantenham “no armário”. Tais contextos podem contribuir para o afastamento de pessoas LGBTI+ dos seus núcleos familiares, além das punições “corretivas”, como violência física, abusos verbais e psicológicos, cooperando para a sua expulsão de casa.
O distanciamento social por causa da pandemia da COVID-19 pode gerar situações desafiadoras e perigosas para pessoas LGBTI+, principalmente para aquelas que não possuem abrigo e/ou estejam desempregadas e, por isso, necessitam retornar à casa de familiares. Muitas pessoas LGBTI+ enfrentam violência e/ou maus-tratos enquanto se abrigam em lares com familiares que não as aceitam. Elas também podem sofrer violência por parceiro íntimo enquanto permanecem em casa, sem a possibilidade de denunciar casos de abuso à polícia devido aos recorrentes crimes e negligências causados pelas entidades públicas mediante LGBTIfobia. O isolamento também pode agravar os desafios pré-existentes de saúde mental, comuns entre as pessoas LGBTI+, incluindo: solidão, depressão, ansiedade e ideação suicida. (ONUSIDA, 2020).
Saúde Mental de pessoas LGBTI+
A LGBTIfobia é uma das principais responsáveis pelo sofrimento emocional de pessoas LGBTI+. Indivíduos LGBTI+ são alvos de discriminação, desrespeito e uma série de agravos e violências, refletindo em sofrimento, indignação e humilhação (COUTO, 2018).
O distanciamento social é desafiador para muitas pessoas LGBTI+, principalmente para aquelas que precisam vivenciá-la na residência de parentes LGBTIfóbicos. Esses indivíduos passarão seus dias confinados em lugares que não apoiam sua orientação sexual e/ou identidade de gênero por um período indefinido de tempo. Há relatos de que a solidão produzida pelo distanciamento social entre pessoas LGBTI+ que moram sozinhas é um dos motivos pelo qual muitas perdem o sentimento de esperança e felicidade, pois não há mais a produção de interações sociais positivas construídas a partir de encontros em espaços seguros, centros comunitários, bares, cafés ou casas de outras pessoas LGBTI+ (GREEN, 2020).
Pessoas LGBTI+ em situação de rua
As dificuldades enfrentadas por pessoas LGBTI+ em situação de rua foram multiplicadas durante a pandemia da COVID-19 diante da inexistência de garantias e de perspectivas direcionadas a esse grupo social. Observa-se, com a pandemia, que o desemprego e a violência se articulam como questões fundamentais da atualidade, e mostram a deficiência de um sistema de proteção social que, no atual cenário, aprofunda as desarticulações entre gênero, raça, moradia e classe social dos indivíduos que estão em situação de rua (BARDI, 2020).
As pessoas LGBTI+ em situação de rua sofrem com a marginalização, a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero e as dificuldades produzidas a partir da LGBTIfobia. Também há maior probabilidade de realizar atividade sexual em troca de alimentos, drogas ou abrigo; e maior risco de violência na rua. No que tange aos abrigos, os profissionais de saúde e da assistência social podem reproduzir a LGBTIfobia institucional, por não possuírem capacitação técnica suficiente para compreender as necessidades sociais e de saúde da população em questão (CAMPOS, 2016).
Pessoas LGBTI+ privadas de liberdade
No Brasil, não há estatísticas oficiais que evidenciem o número de pessoas LGBTI+ privadas de liberdade. As regras postas pelo sistema prisional estão alinhadas com modelos cis-heteronormativos, que deslegitimam os direitos, as necessidades e as identidades dos indivíduos que divergem à norma.
Pessoas LGBTI+ privadas de liberdade estão mais expostas e vulneráveis a contextos de adoecimento por HIV/AIDS e tuberculose pulmonar, além de outras doenças infecciosas (SANCHEZ, 2020). Há estudos que comprovam que há, em grande número, pessoas idosas privadas de liberdade e que vivem com doenças crônicas, o que as insere nos “grupos de risco” para a COVID-19 (SANCHES et al., 2020). Porém, não foram encontrados estudos práticos e empíricos que dessem ênfase às pessoas LGBTI+ privadas de liberdade no contexto da pandemia.
Pessoas trans e o processo de transição no contexto da COVID-19
Outra consequência da COVID-19 no cotidiano das pessoas trans, é o aumento do distanciamento do sistema de saúde, em especial, do Processo Transexualizador no SUS (PTSUS). O PTSUS foi criado em 2008 a partir da Portaria nº 1.707/2008, na qual foram habilitados os serviços em hospitais universitários e a efetivação de procedimentos transgenitalizadores (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2018).
Com o avanço da COVID-19 no Brasil, determinou-se apenas a operacionalização de atividades essenciais em todo território nacional, segundo a Medida Provisória nº 926, de 20 de março de 2020 (BRASIL, 2020). Todavia, os atendimentos relativos ao PTSUS, realizados em caráter ambulatorial ou hospitalar, não foram enquadrados na lista de atividades essenciais. Consequentemente, as consultas para orientação quanto ao acesso e uso da hormonioterapia, consultas com equipe multi e interdisciplinar e a própria confiança e segurança que os usuários possuíam no serviço, foram desreguladas, enquanto que as informações sobre a continuidade de acesso ao PTSUS se tornaram fragmentadas e imprecisas, podendo desencadear desfechos de automedicação e disforias (FERREIRA, 2020).
O enfrentamento, por parte das pessoas trans, sobre a falta de informações de retorno e a continuidade de consultas no PTSUS pode provocar efeitos psicológicos e emocionais (SANTANA, 2021) desencadeadores de problemas de saúde que extravasam à questão inerente ao sexo, orientação sexual ou identidade de gênero.
Pessoas trans e a realização de programas no contexto da COVID-19
Ao longo de sua trajetória de vida, pessoas trans vivenciam exclusão social, estigma, discriminação e falta de proteção aos direitos humanos, que resultam em barreiras ao acesso à moradia adequada, à educação e ao emprego, contribuindo para um processo de vulnerabilização econômica, social e de saúde. A transfobia, em particular, alimenta a falta de acesso a oportunidades de emprego para pessoas trans, incluindo a recusa do emprego e a discriminação no local de trabalho. Como consequência dessa discriminação, transexuais e travestis podem se envolver na realização de programas, ou trabalho sexual, para adquirir renda, bem como usá-los como meio de sobrevivência para conseguir comida, pagar aluguel, abrigo, obter drogas e álcool, sobretudo, mulheres trans e travestis (LOGIE, 2017).
O impacto da COVID-19 em pessoas trans que fazem programa é imediato, uma vez que, com as orientações de distanciamento social, os clientes que procuram os serviços sexuais postergam os encontros devido à necessidade de segurança. Portanto, essas pessoas trans ficam, assim, desamparadas financeiramente, potencializando situações de extrema vulnerabilidade, decorrente da insuficiente renda para prover insumos básicos para a sua sobrevivência. É reconhecendo essa realidade, que o Estado deveria lançar estratégias que visassem a melhoria e a facilidade no acesso desse público à renda emergencial, além de serem estabelecidos protocolos específicos no âmbito das práticas dessa população em particular, para a sua segurança no tocante à COVID-19 (SANTANA et al., 2021).
Importância do reconhecimento das desigualdades e iniquidades
Se determinados grupos já sofriam situações de estigmatização, marginalização e exclusão, a pandemia agravou esses processos e expôs demandas de saúde e sociais. A pandemia da COVID-19 evidenciou a necessidade de considerarmos um ensino e um cuidado em saúde que promovam a diversidade de grupos sociais historicamente marginalizados, como das pessoas LGBTI+. Então, faz-se necessário repensar as práticas de segregação, discriminação, violências e preconceitos aos quais são expostas as pessoas LGBTI+, e atentarmos à necessidade de assegurar a proteção de todas as vidas. Esse reconhecimento das desigualdades e iniquidades direciona a atuação do SUS e a implementação de políticas e ações de intervenção para amenização das desigualdades na oferta de serviços que possuem capacidade relevante na precarização das vidas.
REFERÊNCIAS
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Autoria de:
Willian Martins Araújo
Revisão de Conteúdo por:
Flávio Adriano Borges
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