O que pode o Brasil aprender com nuestras hermanas?

Há quase 6 meses, em 30 de dezembro de 2020, aprovou-se nas câmaras baixa e alta do parlamento argentino a Legalização do Aborto, título midiático para a Ley de Interrupción Voluntaria del Embarazo (IVE), em tradução livre: Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). A Legalização do Aborto é uma conquista por direitos do frutífero movimento (trans) feminista e LGBTQIA+ argentino, que, ao longo de mais de uma década, disputou e tencionou espaços de poder e tomadas de decisão pelo direito de escolha de gestantes sobre seus corpos (mulheres cisgênero, homens transexuais, pessoas não-binárie e intersexo).

A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto remonta há 15 anos, quando a cultura do ciberativismo não era disseminada, sendo o acesso e o uso da internet ainda mais limitados. Então, a conscientização pública a respeito do aborto se dava, sobretudo, por meio de marchas feministas por todo o país, como desdobramento do Encontro Plurinacional de Mulheres (cisgênero, travestis, transexuais, transgênero, lésbicas, bissexuais, negras, indígenas, trabalhadoras, campesinas, prostitutas etc.).

O ciclo de militância política criado no decorrer dos anos (em termos geracionais, de gênero, sexualidade, classe, raça/etnia etc.) permitiu uma luta (trans) feminista e cuir, crítica e radical da sociedade argentina em relação ao direito de autogestão do próprio corpo, do corpo que gesta. Em oposição às regulações do Estado e aos discursos religiosos da Igreja que, conjuntamente, impunham a criminalização e a culpabilização do aborto, baseados em uma lei moral e uma cristã, respectivamente.

A luta pela Legalização do Aborto na Argentina, em toda sua trajetória até sua aprovação, evidencia as narrativas acerca do lugar que ocupa a mulher e o feminino na sociedade ocidental moderna, como diria Federici (2017): de (re)produção da força de trabalho, procriadora, onde o útero é uma mercadoria do capital.

As marchas feministas, conhecidas como marés verde/esverdeada, levaram a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto, nos últimos anos, à cena mainstream dos meios de comunicação de massa em todo o território argentino, promovendo debates massivos e acirrados com aqueles declarados contra o aborto, também no espaço público e privado, urbano e rural. Trata-se de discussões polarizadas entre aqueles que vestem lenços verdes, favoráveis ao aborto (pró-aborto), e aqueles que vestem lenços azuis, contrários ao aborto (pró-vida). A campanha foi impulsionada, a partir de 2015, pelo movimento nacional feminista Ni Una Menos (em tradução livre: Nenhuma a Menos), que surge pela revolta dos casos de feminicídio contra crianças e adolescentes denunciando a violência contra as mulheres, mas que acaba por incorporar em sua agenda a luta pela Legalização do Aborto. O Ni Una Menos incrementa, majoritariamente, uma força jovem e universitária a campanha, mas também virtual em debates públicos nas redes sociais.

 

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É nesse contexto que, em 2018, o projeto de Ley de Interrupción Voluntaria del Embarazo (IVE) é aceito e colocado em votação pelo congresso argentino pela primeira vez, sendo aprovado pela Câmara dos Deputados, mas rejeitado pelo Senado (ALTAMIRANO; MOLINA, 2018) — avalia-se que em decorrência do não apoio do executivo, à época, do então presidente eleito Mauricio Macri (Propuesta Republicana/PRO – Cambiemos).

A aprovação viria pouco mais de 2 anos depois, agora, com apoio do atual presidente Alberto Fernández (Partido Justicialista/PJ – Frente de Todos), que durante sua campanha prometeu redigir um novo projeto de lei a ser encaminhado para o congresso. O projeto foi enviado com atraso decorrente a pandemia de COVID-19 e sob pressão do movimento nacional (trans) feminista e LGBTQIA+. Fernández encabeçou o movimento político-partidário que garante um direito constitucional, o direito à liberdade e ao direito de escolha. Em uma legislação democrática e laica sobre um assunto de saúde pública, pessoas gestantes abortam; mas em que condições? Quantas pessoas gestantes têm complicações decorrentes a abortos clandestinos? Qual o número de pessoas gestantes que vêm a óbito por abortos em condições insalubres?

A legislação vigente sobre o aborto na Argentina, até aquele momento, datava de 1921, sendo permitido em dois casos: violação (estupro) e risco de saúde para a mãe. Desde 2006, o Código Penal argentino estabelecia punições severas às pessoas gestantes que praticassem esse ato, além de punições específicas aos médicos e outros agentes da saúde que o realizassem (DROVETTA, 2012).

A principal característica da IVE, aprovada em dezembro de 2020, é que ela determina e garante a realização do procedimento pelo sistema público de saúde até 10 dias depois de solicitado e no limite da 14ª semana de gravidez. Menores de 16 anos devem estar acompanhadas da responsável legal. Menores de 13 anos, vítimas de estupro ou quem apresente risco de morte poderia exceder as 14 semanas. E habilita a objeção de consciência de profissionais da saúde que não estejam de acordo com tal prática médica.

A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto: Legal, Seguro e Gratuito tem como lema: Educação sexual para decidir; Anticoncepcionais para não abortar; e Aborto legal para não morrer, conforme mostram as figuras abaixo:

O que pode o Brasil aprender com nuestras hermanas é: (1) como encampar uma luta que atravessa diferentes corpos gestantes (2) em uma agenda comum compartilhada por distintos movimentos sociais e (3) em torno de uma pauta única com todas as suas especificidades, (4) capaz de mobilizar um debate massivo tanto no espaço público concreto como no espaço público virtual (5) em todas as camadas sociais com todos seus marcadores da diferença, (6) pautado em um discurso constitucional, democrático, laico e de saúde pública.

Autoria de
Uma Reis Sorrequia

Grupo Temático Diversidade e Cidadania
Amanda Lélis Angotti Azevedo
Andressa Soares Junqueira
Beatriz Barea Carvalho
Carla Regina Silva
Carolina Serrati Moreno
Flávio Adriano Borges
Glieb Slywitch Filho
Jhonatan Vinicius de Sousa Dutra
Larissa Campagna Martini
Laura Maria Brito de Araújo
Letícia de Paula Gomes
Natália Pressuto Pennachioni
Natália Sevilha Stofel

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Autor

  • Flávio Adriano Borges

    Docente Departamento de Enfermagem da UFSCar. Tutor da Liga Acadêmica de Diversidade em Saúde (LADieS) e trabalha a temática voltada à Atenção à Saúde da População LGBTQIA+.

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