O Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS II, de São Carlos – SP) recebe pessoas em sofrimento psíquico grave, dentre elas, pessoas que sofrem por ouvir vozes. Na psiquiatria, esse é um dos sintomas de psicose, as chamadas alucinações auditivas, que na maioria das vezes, em combinação com outros sintomas, auxilia o psiquiatra na construção de uma hipótese de diagnóstico.

O fato de ouvir vozes gera uma série de sentimentos para o ouvidor, sua família, seus amigos e também para a sociedade, tendo na maioria das vezes um efeito perturbador. As vozes podem ser ameaçadoras, hostis, controladoras e podem diminuir a autoestima e a autonomia dos que as ouvem, além de fazer com que acabem se afastando do trabalho, da vida familiar e da vida social. Infelizmente, a pessoa que ouve vozes é vista pela sociedade de forma estigmatizada e preconceituosa, sendo tachada como “louca” ou sendo caracterizada ou denominada por uma hipótese de diagnóstico (por exemplo: “aquele esquizofrênico”), o que faz com que muitos ouvidores escondam tal experiência.

De acordo com um estudo exibido pela Rede Internacional de Ouvidores de Vozes, a INTERVOICE (2017), estima-se que em torno de 2% a 4% da população mundial ouvem vozes. Na medicina psiquiátrica ocidental, a medicação é um dos principais recursos utilizados para suprimir as vozes, porém muitos ouvidores, mesmo quando medicados, continuam se queixando das vozes, apontando dificuldades e prejuízos na rotina cotidiana por interferência delas, se isolando da vida familiar e da vida social e vivenciando grande sofrimento psíquico por não compreender e não saber lidar com esse fenômeno.

A fim de buscar diferentes interpretações para o sofrimento, favorecer a singularidade, a complexidade humana e o protagonismo do ouvidor de vozes, surge na década de 1980 uma nova abordagem para lidar com as vozes, o Movimento Internacional dos Ouvidores de Vozes, por Marius Romme (psiquiatra holandês) e Patsy Hage (ouvidora de vozes).

A partir de conversas entre eles, o médico compreendeu que, para Patsy, importava o que diziam as vozes, o poder que exerciam sobre ela e o estresse que ela vivenciava por conviver com as vozes. Marius Romme passou, então, a organizar reuniões entre os ouvidores de vozes que frequentavam seu consultório, com o objetivo de fazer com que eles pudessem conversar sobre as vozes, compartilhar as experiências, buscar sentidos e compreender o significado pessoal que as vozes tinham na vida de cada um deles. Nascia então o Grupo de Ouvidores de Vozes, a partir da compreensão de que a audição de vozes é uma manifestação da existência, que deve ser acolhida e qualificada, com apoio, segurança, respeito e empatia, a partir do denominador comum: a experiência de ouvir vozes.

No Brasil, o movimento já conta com iniciativas de Grupos de Ouvidores de Vozes em algumas cidades, bem como edições do Congresso Nacional de Ouvidores de Vozes (por meio de articulações entre ouvidores de vozes, familiares, profissionais de saúde, professores, da IMHCN (International Mental Health Collaboration Network), do INTERVOICE (Movimento Mundial dos Ouvidores de Vozes) e do CENAT (Centro Educacional Novas Abordagens Terapêuticas).

Na mesma direção, o CAPS II de São Carlos – SP iniciou em outubro de 2019 o Grupo de Ouvidores de Vozes, em busca de oferecer um ambiente seguro para os ouvidores e proporcionar um momento para o compartilhamento da experiência de ouvir vozes, compreender as demandas e as necessidades, propiciar novas relações e buscar coletivamente estratégias para lidar com as vozes.

A abordagem do grupo segue as orientações e os pressupostos do Movimento Internacional dos Ouvidores de Vozes, a saber: os ouvidores detêm uma expertise sobre suas experiências; ouvir vozes é uma experiência humana singular; as diversas explicações para a existência e a compreensão das vozes devem ser aceitas e respeitadas; a experiência não é discutida pela ótica da patologia (ainda que não se trate de negar a existência de um transtorno mental); o processo de aceitação das vozes é eficaz; é possível criar estratégias individualizadas para lidar com as vozes; o grupo é um ambiente de apoio coletivo para compartilhar experiências, vivências e estratégias para o enfrentamento das dificuldades, que podem ajudar as pessoas a compreenderem e a lidarem com suas vozes; no grupo é valorizada a linguagem comum, não profissional.

O grupo se propõe a oferecer um espaço de escuta e troca de experiências, com o objetivo de ajuda mútua, assim como ilustrado nos relatos dos participantes.

Conforme ética na publicação de dados, os usuários assinaram um termo de autorização dos depoimentos abaixo, mesmo sendo anônimos.

 “Me sinto menos sozinha e me ajuda. Me ajuda a perceber que o incômodo que as vozes trazem é superável, e a ver que não sou a única lidando com isso”.

“Tem sido pra mim… o grupo ouvidores de vozes muito importante, muito útil para meu tratamento. Me sinto acolhida pra expressar o que sinto a qualquer momento, sempre quando tem as reuniões de terça, me sinto encorajada a prosseguir em diante”.

“Sou grata a vocês por esse apoio emocional, aconselhamento. Me faz muito bem e me renovo toda semana”.

“Antes eu as ignorava e isso me trazia alguns problemas. Antes eu pensava que apenas eu é que vivia isso, mas com o grupo aprendi que existem várias pessoas como eu, também aprendi muito com o relato dos outros (…)”.

O grupo é um espaço de construção de uma rede de suporte social, que oferece um refúgio no qual as pessoas que ouvem vozes podem se sentir seguras e confortáveis para falar sobre as vozes, e no qual podem ser aceitas, valorizadas e compreendidas (Intervoice Brasil, 2017).

Quem vive e lida com essa experiência precisa de apoio. A maioria dos ouvidores se sente sozinho, envergonhado, com medo e não consegue falar sobre isso com pessoas próximas. Se você tem um membro da família ou um amigo que ouve vozes, aqui estão algumas orientações:

– Tente não ter uma reação exagerada ao saber que a pessoa ouve vozes;

– Falar sobre as vozes ajuda muitos ouvidores a lidarem melhor com elas. Pergunte à pessoa sobre suas vozes, desde quando começou a ouvir, quem são elas, o que dizem;

– Ofereça uma escuta amiga, esteja pronto para ouvir caso a pessoa queira compartilhar com você. Tente não interromper, reagir criticamente ou com julgamentos;

– Tranquilize seu membro da família ou amigo quando ele ouvir vozes. Dê o espaço e o tempo sozinho quando ele precisar;

– Caso seja necessário, ofereça ajuda prática no dia a dia. Algumas tarefas podem se tornar difíceis;

– Estimule a autonomia e a independência do ouvidor;

– Se necessário, ajude a pessoa a procurar ajuda especializada de profissional de saúde mental.

Acredite na pessoa e em suas potencialidades! Incentive o ouvidor a tomar suas próprias decisões e a participar ativamente do seu cuidado. O apoio da família e das pessoas próximas, a aceitação e a compreensão das vozes como uma experiência pode direcionar a mudança pessoal e a recuperação de vivencias positivas na vida dos ouvidores, além de fortalecer sua autoestima e estimular a participação e a inclusão social.

O CAPS II reafirma a importância do cuidado em liberdade; centrado na pessoa; baseado em relações horizontais, com respeito e dignidade; a partir da compreensão de que cada sofrimento é único e singular; valorizando as relações interpessoais e o desenvolvimento humano! Saúde Mental e Liberdade!

 

Autoria de:

Carolina Elisabeth Squassoni – Terapeuta Ocupacional do CAPS II de São Carlos

 

Referências:

BAKER, Paul. Abordagem de Ouvir Vozes: Treinamento Brasil. Centro Educacional Novas Abordagens Terapêuticas – São Paulo: CENAT, 2016.

Barros, O. C.; Serpa Jr, O. D. de. Ouvir vozes: um estudo etnográfico de ambientes virtuais para ajuda mútua. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v.27, n.4, p.867- 888, 2017.

EGITO, M. A. T. do; SILVA, E. A. da. Grupo de ouvidores de vozes no enfretamento de estigmas e preconceitos. Rev. NUFEN,  Belém ,  v. 11, n. 2, p. 60-76, ago. 2019.

KANTORSKI, L. P. et al . Grupos de ouvidores de vozes: estratégias e enfrentamentos. Saúde debate, Rio de Janeiro,  v. 41, n. 115, p. 1143-1155,  Dec.  2017.

 

Crédito da imagem: Royalty Free Image em Rawpixel 

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Categoria: Saúde mental

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Autor

  • Larissa Campagna Martini

    Professora do Departamento de Medicina e do Programa de Pós-Graduação em Gestão da Clínica, ambos da Universidade Federal de São Carlos. Formada em Terapia Ocupacional, com Doutorado em Psiquiatria e Psicologia Médica pela UNIFESP. Áreas de atuação: Saúde Mental, Trabalho e Saúde, Inclusão no Trabalho e Atenção Básica.

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