No ano longínquo de 1987, no mês de dezembro, aproximadamente 350 trabalhadores de saúde mental ganharam as ruas do município de Bauru, tomando para si o lema: por uma sociedade sem manicômios. No chamado “Manifesto de Bauru”, o movimento antimanicomial se firmaria como força social relevante. Defendia, à época, uma pauta ainda muito presente, como se pode ver neste trecho:
“O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida.” (Manifesto de Bauru, 1987).
Pois é! Muita água rolou por debaixo dessa ponte… Em 2001, o Congresso Nacional aprovou, ao som das comemorações do Dia Mundial da Saúde, “Saúde Mental: Cuidar, sim. Excluir, não”, depois de mais uma década de tramitação, a Lei n.º 10.216, sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, redirecionando o modelo assistencial em Saúde Mental. Mas, ao contrário do que foi originalmente proposto pelo deputado Paulo Delgado, em 1989, a “extinção progressiva do manicômio e sua substituição por outros serviços” não foi incluída.
Entre 1990 e 2006, foram idas e vindas, jogos de força, um passo adiante, dois para trás, pressão de movimentos, lobby de empresários, e o servicinho prestado com afinco pela Associação Brasileira de Psiquiatria para assegurar os interesses do mercado da loucura no Brasil. Entre 2006 e 2014, avanços inegáveis e alguns retrocessos na Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas… Do pós-golpe de 2016 aos dias de hoje, somente retrocessos!! Por isso, hoje é dia de lembrar-se de lutar!!
Mas como estamos em tempos pandêmicos e os profissionais de saúde estão no centro das atenções, para o bem e para o mal, diga-se de passagem, vamos lembrar que os impasses que envolvem a COVID-19 vêm mostrando seu lado sombrio também no campo da saúde mental. Outras postagens do InformaSUS já abordaram esse tema. Os impactos da pandemia no bem-estar psíquico são devastadores, em especial para os vulnerabilizados e para trabalhadores de saúde.
Hoje, quero me lembrar de um momento histórico recente da Luta Antimanicomial que tem desdobramentos muito relevantes até hoje, transmitindo muito bem como tem se produzido, no Brasil, a luta cotidiana. Desejo fazer uma homenagem a todos os militantes e pessoas envolvidas na causa mencionada, rememorando os eventos que ocorreram na região de Sorocaba, SP, envolvendo grandes estruturas manicomiais da região que abrange os municípios de Sorocaba, Salto de Pirapora e Piedade. Denúncias de maus-tratos, de funcionários desses complexos hospitalares manicominais, de profissionais de saúde que começaram a vazar cenas do cotidiano desses grandes manicômios, mostrando a desumanidade como eram tratados os “internos”. Isso gerou uma grande comoção e protestos de entidades de direitos humanos, além da militância da reforma psiquiátrica (pressões que o governo à época era sensível) que gerou o contexto político que culminou no Termo de Ajuste de Conduta (TAC) de Sorocaba.
No 18 de dezembro de 2012, o Termo de Ajuste de Conduta entre o Ministério Público do Estado de São Paulo, Ministério Público Federal e as Prefeituras dos municípios mencionados, firmou um compromisso tripartite com um processo contínuo de desinstitucionalização dos pacientes moradores nos sete hospitais psiquiátricos da região, garantindo a integralidade da assistência terapêutica em todos os componentes da Rede de Atenção Psicossocial.
Na época, eu era Coordenador da Política Nacional de Humanização no Ministério da Saúde (PNH), e profissionais dessa área compuseram, com diversas outras, uma grande equipe técnica organizada pelo Ministério da Saúde, em apoio à Coordenação Nacional de Saúde Mental, para realizar as ações pactuadas no TAC.
Foi uma das maiores mobilizações da história nesse campo, com quase uma centena de agentes da esfera federal, que tinha como tarefa realizar o censo de todos os 2700 pacientes internados nos sete manicômios da região, nos primeiros 30 dias do TAC.
Mas se vocês pensam que fazer censo em manicômio é algo como cadastrar pacientes, não viram nada!! Primeiro, você tinha que entrar lá, transitar em lugares insalubres, celas, lugares cheios de gente submetida a condições subumanas, alguns indivíduos sem roupas misturados com suas próprias fezes. Ver pessoas dormindo em cama de pau, sem colchão, presas e isoladas. Além disso, não havia acesso à luz do sol há anos. Situações que muitos dos trabalhadores não conseguiram suportar em seus corpos e que eu como gestor, que solicitei um a um, que dedicassem 30 dias de suas vidas, longe da família, não poderia protegê-los. Gente que foi fazer essa missão quase impossível.
Depois de localizar onde estavam internadas as pessoas, foi necessário solicitar que cuidassem, limpassem, conseguissem roupas para vesti-las, ajudar a dar banho, providenciar acesso ao sol, verificar o estado clínico de cada um, tentar agrupar aqueles que podiam ficar juntos em locais melhores, bem como transferir para serviços de saúde os que precisavam. O trabalho passava a ser descobrir se eles tinham documentos e recuperar as identidades perdidas, ou seja, ir com eles para providenciar os documentos básicos. Ademais, foi importante analisar pilhas e pilhas desses registros, muitos deles falsificados, para descobrir se cada paciente tinha alguma renda, se o manicômio se apropriava da renda de internos e desfazer processos de abuso financeiro.
Descobrir se todos eles, quem não tinha renda, serviriam como pretexto para conseguir um benefício que garantisse algo para que eles pudessem voltar à vida social e sustentar-se. Depois, investigar as origens, as cidades de origem, a localização das famílias. Tentar verificar se há condições de restabelecimento dos vínculos sociais e familiares de cada um. Para isso, era preciso ouvir cada história de vida, cada cena gravada na memória de violência, de abuso, para resgatar alguma lembrança que indicasse quem era cada pessoa que estava internada sem documentos adequados.
Lidar com a impotência, com a injustiça, com a sordidez humana, com agenda corrida, com a pressão do governo, da justiça, com o receio de tudo ser cancelado no próximo capítulo do jogo político nacional. Não foi fácil! Mas, incrivelmente, foi feito. Relato tudo isso para que saibam que não se pode chamar um manicômio de serviço de saúde. Não é um hospital! É um depósito de gente esquecida! Uma prisão! Uma mostra da capacidade da perversidade humana e dos limites dos corpos massacrados e coisificados. A luta antimanicomial é difícil, mas necessária!
Com essa história, cheia de relatos de pessoas que estiveram nesses processos, não só em Sorocaba, mas em todas as regiões do nosso Brasil, saudamos a todos, todas e todes o dia da Luta Antimanicomial!!
“Por uma sociedade sem manicômios!”
Gustavo Nunes de Oliveira
Professor do Departamento de Medicina
Coordenador do InformaSUS
Comunicação Social e Científica para a Democratização da Ciência
18 de maio de 2021
Foto: Fotos Públicas | Museu da Loucura, Barbacena/MG | Oswaldo Afonso/ Imprensa MG