Pandemia, consumo de álcool e gestação: um olhar sobre os efeitos embriofetais nocivos devido à ingestão de álcool durante a gravidez

 

Débora Gusmão Melo e Grupo Cuidado sem Limites

 

O aumento do consumo de álcool durante o isolamento social imposto pela pandemia é uma realidade que tem preocupado, considerando seu prejuízo à saúde humana. Ciente disso, a Organização Mundial da Saúde emitiu uma orientação para que governos e empresas reduzissem a venda de álcool no período de pandemia. Porém, isso não tem acontecido no Brasil.

Esse aumento no consumo de álcool está relacionado à maneira como algumas pessoas reagem às situações de medo, estresse, ameaça, ansiedade e desconforto emocional. Pesquisadores identificaram que, em situações de isolamento social, as pessoas têm usado mais substâncias sedativas e anestésicas (como álcool e maconha) e menos substâncias estimulantes (como cocaína ou ácido). Aumentar o consumo de bebidas alcoólicas no ambiente domiciliar pode ser uma forma de sedação, de anestesia e de reação a sintomas negativos ligados a sofrimento, ansiedade, estresse e imprevisibilidade sobre o futuro. Contudo, se inicialmente o álcool possui um efeito ansiolítico, diminuindo ansiedade e proporcionando uma sensação de prazer e relaxamento, a longo prazo ele pode piorar quadros de ansiedade, especialmente em pessoas que possuem diagnóstico de algum transtorno deste tipo.

Campanha Too Young to Drink

Além disso, o consumo de bebidas alcoólicas é considerado um problema de saúde pública, já que o álcool é um agente teratogênico comum e potente. Um agente teratogênico é qualquer tipo de substância, de natureza física, química ou biológica, que quando consumido durante o período gestacional, prejudica o desenvolvimento intraútero do embrião/feto, podendo acarretar em deficiência intelectual e defeitos congênitos na criança.

Quando uma mulher grávida ingere bebidas alcoólicas, a criança no seu útero também o faz. Isso porque o álcool atravessa a barreira placentária e prejudica o crescimento e o desenvolvimento embriofetal. O cérebro é o órgão mais susceptível aos efeitos da exposição pré-natal ao álcool, já que essa substância, a depender do tipo de célula cerebral e do estágio de desenvolvimento embriofetal, pode provocar morte celular, prejuízo na formação de novos neurônios, alterações de migração celular, problemas na produção de neurotransmissores e na formação de sinapses. Crianças que foram expostas ao álcool intraútero podem ser consideradas hiperativas ou apresentarem problemas de aprendizagem na escola. Quando adolescentes, muitos desses jovens abandonam os estudos, não conseguem manter um emprego e se envolvem em má conduta.

Em 1973, foi identificado e definido um quadro clínico específico para as crianças nascidas de mulheres etilistas, denominado “Síndrome Alcoólica Fetal” (SAF ou FAS, Fetal Alcohol Syndrome). Essa é uma condição irreversível caracterizada por anomalias craniofaciais típicas, deficiência de crescimento intra e extrauterino, disfunções no sistema nervoso central (incluindo anormalidades neurológicas, alterações comportamentais, atraso no desenvolvimento neuropsicomotor e deficiência intelectual), além de várias malformações associadas, principalmente cardíacas, oculares, renais e de coluna vertebral.

Adaptado de Baby Therapy Centre

O termo “transtorno do espectro alcoólico fetal” (TEAF ou FASD, Fetal Alcohol Spectrum Disorders) foi proposto posteriormente e se refere ao quadro clínico descrito em um grupo de crianças expostas ao álcool intraútero, mas que não possuem quadro clínico completo de SAF, embora habitualmente apresentem alterações neurocomportamentais. Pessoas com TEAF possuem déficits intelectuais, com coeficiente de inteligência médio na faixa limítrofe, deficiências em diferentes componentes da função executiva e da atenção, bem como deficiências no processamento de informações e no processamento numérico, no raciocínio espacial, na memória visual, na linguagem e nas funções motoras.

Campanha Too Young to Drink

Reconhecendo o consumo de álcool na gestação como um problema de saúde pública, a Organização Mundial de Saúde e a EUROFASD Alliance (Aliança Europeia da FASD) instituíram o dia 09 de setembro como o Dia Internacional de alerta sobre os Transtornos do Espectro Alcoólico Fetal. Desde então, aproximadamente 60 organizações de 30 países diferentes se uniram para promover a campanhaToo Young to Drink (Jovem demais para beber), com o objetivo de promover uma consciência sobre os efeitos deletérios do uso de álcool durante a gravidez.

Não há quantidade ou período seguros para a ingestão de álcool durante a gravidez. Mesmo uma pequena quantidade dessa substância pode ser prejudicial ao feto. Assim, todos os tipos de bebida alcoólica são potencialmente nocivos e devem ser evitados: vinho, cerveja, cachaça, licor etc. Como cada organismo é diferente, existem mulheres que beberam durante a gestação e tiveram filhos saudáveis. Porém, o melhor é não correr o risco de prejudicar a criança: é mais seguro não beber nada durante a gravidez!

Design por Ana Paula de Lima

No Brasil, estudos realizados com diferentes metodologias estimam que a frequência de consumo de álcool é registrada entre 10% e 40% do público gestante. É muito comum mulheres ingerirem bebidas alcoólicas sem saber que estavam grávidas, mas nunca é tarde demais para parar de beber. Quanto mais cedo o hábito de ingerir álcool for interrompido durante a gestação, mais saudável será o recém-nascido.

Em 2014, a Organização Mundial e Saúde elaborou diretrizes com recomendações para identificação e manejo de gestantes que fazem uso de álcool e outras substâncias psicotrópicas. Esse é um material técnico bem completo, que orienta os profissionais de saúde sobre como lidar e como auxiliar mulheres que ingerem bebidas alcoólicas na gravidez. Ele pode ser acessado neste link: https://www.who.int/publications/i/item/9789241548731.

Design por Ana Paula de Lima

Beber pode desempenhar um papel relevante na vida social. Por isso, mulheres grávidas às vezes se sentem pressionadas a continuar consumindo álcool. Porém, é possível ser criativo e se divertir sem a ingestão de álcool. Aliás, muitos casais aproveitam a gestação para interromper, juntos, o consumo de bebida alcoólica e proteger o bebê que está por vir. O apoio do companheiro nessa mudança de hábito é muito importante. Familiares e amigos também podem colaborar, sempre respeitando e apoiando a decisão da gestante de não beber.

 

Crédito da Imagem: Campanha Too Young to Drink

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Autor

  • Débora Gusmão Melo

    É graduada em Medicina pela Universidade Federal de Sergipe (1991 a 1997), fez residência (1997 a 2000) em Genética Médica no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), mestrado (2000 a 2002) e doutorado (2002 a 2006) em Ciências Biológicas (Genética) no Departamento de Genética da FMRP-USP. Desde 2006 é professora na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em regime de dedicação exclusiva, tendo participado da fundação do Departamento de Medicina da UFSCar. Em 2011 fez estágio pós-doutoral no UnIGENe, Instituto de Biologia Molecular e Celular, Universidade do Porto, Portugal. Atualmente é professora associada no Departamento de Medicina da UFSCar e orientadora permanente no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFSCar, que possui os cursos de mestrado e doutorado em Ciências da Saúde. Atua nas áreas de genética clínica, genética comunitária e aconselhamento genético. Desenvolve pesquisas com métodos qualitativos e/ou quantitativos sobre os seguintes temas: diagnóstico clínico e molecular de doenças genéticas, defeitos congênitos e deficiência intelectual, aconselhamento genético e saúde pública (estudos epidemiológicos, de gestão e de educação em genética médica). Lattes: http://lattes.cnpq.br/2587800992546559

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